quinta-feira, 7 de abril de 2016

NO RASTO DA MEMÓRIA: O Bom Pastor *

Estas palavras são um tributo a todos os pastores. Foram muitos os que passaram pela casa do meu pai e com os quais tive oportunidade de conviver. As primeiras memórias vão para o início dos anos setenta. No Couto da Marfeira onde o meu pai era rendeiro, recordo dois grandes homens no pastoreio do gado. O primeiro é o Ti Zé Barra: O Ti Zé Barra era um homem altivo, não tinha o polegar da mão direita, usava chapéu de aba direita, era mestre no maneio do gado e o melhor na caça com pau. O outro pastor que recordo, primeiro no Azinhal e depois na Marfeira, foi o tio do meu pai, José Bento. A casa da Marfeira utilizada pelos pastores era de uma pobreza franciscana. Uma sala ampla com lareira e os respectivos utensílios; a tenaz, a trempe, panelas de barro, bancas de pau, uma pequena mesa (mesa de pastor) e a lenha ali ao canto do lume. Estacas de madeira espetadas na parede, serviam para pendurar qualquer coisa, o casaco, o barril de barro para manter a água fresca, o machado, etc. Acompanhando as ovelhas de pastagem em pastagem, o pastor era um autêntico nómada.
São também dessa época alguns episódios passados na Herdade da Nave da Cheira, entre Póvoa e Meadas e Castelo de Vide. Aqui a casa tinha outras condições, construída sobre um enorme rochedo de granito, tinha várias divisões e forno. Foi na Nave da Cheira onde os meus avós maternos estiveram a explorar a horta entre 1969 e 1976, sempre na companhia de pastores. Aos Domingos íamos jantar a esta propriedade, para podermos usufruir da sua companhia. O mobiliário era apenas o indispensável. A mesa das refeições era tão pequena que tínhamos de colocar o prato no colo. No canto oposto ao nosso o pastor preparava o seu jantar. Chamava-se José Domingos e era natural de Montalvão. A minha avó convidara-o para jantar connosco, o pastor agradeceu mas manteve-se à distância a preparar a sua refeição. Era muito pequeno, mas ainda hoje recordo aquela imagem, a silhueta do pastor a jantar uma salada de tomate.
Deslocar os animais de um local para outro era um trabalho cansativo mas divertido. Na medida do possível também ajudava nestas mudanças. Íamos a pé de Castelo de Vide para o Pai Lázaro (Montalvão), do Pai Lázaro para o Pinheiro (Pé da Serra), do Pinheiro para a Velada, etc. Posicionava-me à frente do rebanho e o pastor atrás ou vice-versa. No Pinheiro e no Vale Pedrão, as casas eram autênticos palheiros, sem um mínimo de condições. No Pai Lázaro onde a casa era um pouco melhor, os pastores eram por norma de Montalvão. Por ali passaram, entre outros, o Ti João Guanito, o Ti João Pássaro, o Manuel Pintor, o João Manuel e claro o tio do meu pai, José Bento. À noite lá ficavam os pastores junto do lume, com um rádio a pilhas e os seus cães. Não sei se por companhia tinham apenas a solidão, creio que não. Nas noites de céu limpo, eram aos milhões as estrelas que desciam sobre o monte. A sua luz iluminava o sonho do pastor. Quais seriam os seus sonhos? Quais seriam os seus projectos? No fim do dia, lá ia o Ti José Bento passar o serão com o Severino ao Monte Queimado ou ao Monte da Fonte dos Cantos. O Severino era o vizinho mais próximo. Mas para ir do Pai Lázaro ao Monte Queimado não era bem a mesma coisa que ir ali ao fundo da rua. Eram homens rijos, rijos no corpo e fortes no espírito, nada lhes metia medo. O João “Tanganho” é outro pastor que recordo, andava sempre a pé. Vinha a pé do Pai Lázaro para o Pé da Serra, do Rolengo (Nisa) para a Velada. Preferia andar a pé mesmo que lhe oferecessem transporte. O João tinha apenas um braço mas fazia todos os trabalhos relacionados com a sua actividade, o pior era quando se zangava. Às vezes nas mudanças do gado, as ovelhas saiam fora da rota, iam para todo o lado, excepto para onde nós queríamos. Nesses momentos o João gritava a bom gritar e o cão é que “pagava as favas” sem ter qualquer culpa.
Muitos desses pastores já partiram para a sua última morada. Nós na Terra quantas vezes continuamos à procura do Bom Pastor para nos indicar o trilho certo. Há dias sonhei com um pastor que já faleceu. Nos sonhos tudo é possível, não questionamos o que não faz sentido. Nesse sonho uma pessoa que me é próxima encontrava-se com uma doença grave, agonizava na cama sem qualquer esperança de cura. Reparo que no canto do quarto estava um dos pastores. Vou chamar-lhe simplesmente “José”. Dirijo-me a “José” e pergunto-lhe: Como era possível estar ali, dado que falecera há já tantos anos. O bom pastor respondeu-me nesse sonho. – “É verdade que já parti. Parti mas estou sempre presente. Estou aqui para ajudar”.Nos últimos trinta anos os hábitos mudaram, é a evolução natural dos tempos. Não sei se os pastores ainda dormem nos montes. Não sei se ainda se muda gado. Não sei se ainda há pastores. Sei sim que estou grato a todos os bons pastores, pelo privilégio do convívio e pela aprendizagem. Quem sabe se, os que já partiram, não estão a interceder junto das estrelas, de todas as estrelas do céu. Que nas noites de céu limpo desçam até à Terra. Desçam para nos iluminar e para nos mostrar o melhor caminho, a todos, homens e mulheres do mundo. Quem sabe se os sonhos não fazem sentido. Quem sabe se, não continuam a olhar por nós, por todos nós sem distinção. Nós, ovelhas tresmalhadas.
Luís Mário Correia Bento
  • Artigo publicado no "Jornal de Nisa" - 1ª Série