Já
passaram 67 anos, mas o episódio da “Revolta ou Greve do Pão” no dia 12 de
Dezembro de 1943, uma das páginas mais negras e sangrentas da história de Nisa
continua viva na memória daqueles que presenciaram ou tomaram parte no
acontecimento.Manuel do Rosário Carita ou Manuel Bugio como conhecido
em toda a vila, lembra, aos 84 anos de uma vida de encontros e desencontros, o
que se passou nesse “dia negro” e nos meses seguintes. Relato na primeira
pessoa, com pequenas “entradas” de contexto.
Domingo
de festa e de tragédia
“Era
domingo e havia baile no “Benfica”. Estive a namorar uma cachopa na “vila” e
quando vim de lá deparei-me com uma grande algazarra no Rossio e pus-me a
observar o “panorama”.
O
povo dizia que tinha vindo o Manuel Vigora com o pão para a padaria do senhor
João Mendes na Porta da Vila. O padeiro meteu o pão dentro da padaria e depois
não o venderam a toda a gente, só a quem queriam. O pão estava quase todo
encomendado, pois estavam lá as bolsas e aí o povo conspirou. Foi ali que
começaram o barulho. Alguns, mais exaltados tentaram forçar a porta e sacar o
pão que pudessem. Daí vieram para o Rossio onde o povo se juntou. A multidão
era cada vez maior e logo ali a GNR prendeu o ti Simplício Tristão e levou-o
para o posto. O homem não tinha nada a ver com o protesto e alguém se lembrou
de tocar os sinos a rebate, enquanto outros falaram com um vereador da Câmara
para que o ti Simplício Tristão fosse libertado, o que veio a acontecer. Mas
isso não impediu que o povo acalmasse a sua revolta. O movimento engrossou e do
Rossio as pessoas dirigiram-se à “fábrica” ao fundo da Devesa de onde tentaram
trazer pão. Depois subiram a Devesa de Traz e dirigiram-se para a Estrada de
Alpalhão. Havia baile no “Benfica” e alguns ficaram-se por lá, mas os outros
foram em frente e dirigiram-se à padaria do Vigora. É ali, a meio da Estrada de
Alpalhão, junto à padaria que se dá o desfecho sangrento. De um momento para o
outro, surgem guardas e polícias vindos de Portalegre que começam a disparar
sem qualquer aviso. Cada um fugiu para onde pôde. Houve feridos ligeiros e dois
feridos com gravidade. Um deles, o João Louro, que nada tinha a ver com aquilo,
foi ferido numa perna que teve de ser amputada. Outro, o ti Alfredo Mourato
“Galacho” foi ferido nas “partes” (órgãos genitais) sofreu muito e acabou por
falecer ao fim de uns meses.”
Não
houve presos nessa noite, mas no dia seguinte, a repressão abateu-se sobre
inúmeras pessoas, a torto e a direito, tivessem ou não participado naquilo que
a acta da sessão da Câmara de 16 de Dezembro descreve como “alteração da ordem
pública”. Uma simples suspeita, um nome ouvido à socapa ou a denúncia de alguns
dos comerciantes alvo da indignação popular, bastaram para que, em pouco tempo,
a cadeia se fosse enchendo de gente que mais não fizera do que pedir um pouco
de pão para os seus. Manuel Charrinho, trabalhava nas minas de volfrâmio no
Mato da Póvoa. Foi o primeiro a ser preso, ainda o sol não nascera, nessa fria
manhã de 13 de Dezembro. Preparava-se para partir, de fatada aviada para mais
uma semana de trabalho, mas a PSP de Nisa deu-lhe como primeiro destino a
cadeia comarcã. Outros se seguiram nesse dia e durante toda a semana. Manuel
Bugio, o nosso interlocutor, não escapou às “boas graças” das autoridades
policiais da vila.
Preso sem culpa formada
“Andava
a fazer lenha e vim buscar água à “Sucata” (uma serração onde está hoje a
secção de Finanças). Nessa altura vinha o Vigora trazer pão à padaria e diz-me:
“Tu ainda aí vens?” e eu respondi-lhe – “ Atão onde é que devia estar? Passado
pouco tempo veio a polícia buscar-me. Alguém tinha dado o meu nome e sem saber
porquê fui “engavetado”, levado para o pé do ti Manuel Charrinho. Durante a
semana foram chegando mais presos, ao todo perto de 40 homens, ali despejados a
monte, sem condições, cada um dormia como podia, uns no chão outros de pé.
Estávamos incomunicáveis, as famílias iam-se revezando durante a madrugada para
saber se nós ainda lá estávamos. Não podiam contactar connosco e iam deixando
alguma coisa, contando com a benevolência do carcereiro, o ti Manuel Ramos. Ao
fim de 10 dias vieram 2 camionetas de Portalegre que nos levaram para os calabouços
do Governo Civil. Estivemos lá 41 dias, incomunicáveis, e todos os dias havia
interrogatórios. Queriam saber quem era o “cabecilha” do movimento, coisas da
política, e todos nós dizíamos o mesmo: não percebíamos nada de política, eu
muito menos, porque só tinha 17 anos e que aquilo que acontecera fora apenas
uma revolta por causa da falta de pão, feita extemporaneamente, sem cabecilhas
ou lá o que fosse. Era domingo, único dia da semana em que os trabalhadores
rurais e assalariados tinham livre e aproveitavam para se juntar e beber uns
copos. Nos calabouços do Governo Civil estávamos a “monte”. As necessidades
eram feitas no mesmo sítio. Não recebíamos visitas. Os familiares iam lá mas
não podiam ver-nos, deixavam o que levavam para nos ser entregue. Eram tempos
de muita miséria e o Natal de 1943 com os principais activos das famílias
presos foi uma tragédia, com muita dor e tristeza.
Os interrogatórios no Governo
Civil fizeram uma selecção e ainda hoje não sei porque fui “escolhido” para me
juntar aos 17 homens que fomos para Caxias. Atravessámos a cidade de Portalegre
a pé e a pé, em pelotão, continuámos até à estação, vigiados por polícias
armados como se fôssemos uns criminosos. Foi das coisas que mais me doeu e
marcou, o ter de atravessar a cidade sob o olhar das pessoas. Mais tarde
compreendi que isso fazia parte da estratégia do regime para mostrar o medo e o
terror e apontar-nos como maus exemplos. Seguimos de comboio para Lisboa,
sempre rodeados de polícias até à sede da PIDE onde houve mais interrogatórios
e daí fomos levados para o forte de Caxias. Fomos fotografados, um a um e de
novo interrogados. Estivemos um ano em Caxias e só depois é que fomos julgados
no Tribunal da Boa Hora. Sete dos que ficaram em Nisa também lá foram para ser
julgados.
O
doutor José Rasquilho de Barros, de Amieira do Tejo, foi o nosso advogado
oficioso e testemunharam a nosso favor, os doutores Carlos Bento e Aniceto
Ferreira Pinto, farmacêutico na Porta da Vila. Todos eles disseram o mesmo, que
éramos pessoas de trabalho e nada tínhamos a ver com políticas. O dr. Rasquilho
de Barros pediu por Deus ao Juiz que nos pusesse em liberdade e que desse a
pena como cumprida àqueles que tinha vindo de Nisa, pois que para sofrimento
das famílias já chegava. Saímos do Tribunal direitos a Caxias onde dormimos
mais uma noite. Os nossos camaradas que tinham vindo de Nisa tiveram de cumprir
uma pena de sete meses e foram ocupar os nossos lugares. No dia seguinte saímos
em liberdade e cada um ficou entregue à sua sorte. Para mim, acabara um grande
drama. Tinha uma boa “cunha” para ir para a polícia, tal como outros para
funções públicas, entre eles o Vasco Barra que já tinha o exame feito para
entrar e a partir dali ficou chumbado.”
Os
meses no Forte de Caxias
“Não
posso dizer muito mal de Caxias, o que não aconteceu com outros que foram
maltratados. Era faxina dos próprios guardas que nos guardavam a nós e também
fazia trabalhos de jardineiro. Os outros iam trabalhar para o forte em
trabalhos mais pesados. Tínhamos 2 horas de recreio e estávamos separados dos
outros presos políticos, na sala
As
famílias em Nisa sofriam, as mulheres e os filhos tinham os homens e os pais
presos, os seus únicos sustentos e não os podiam ajudar. Os dois homens
solteiros no grupo, era eu e o António Veredas. Não posso dizer mal dos guardas
de Caxias. Sabiam que não estávamos ali por motivos políticos, muitos deles
eram pobres como nós e tinham passado pelas mesmas situações de miséria. Fomos
dados como “faxinas” do forte e pessoas honestas.”
O
regresso a Nisa
“
No regresso a Nisa fomos bem recebidos, com muita alegria e lágrimas à mistura.
O pesadelo para nós, não para todos, tinha acabado. Os que trabalhavam no campo
continuaram a trabalhar, sem problemas. Aqueles que esperavam entrar para um
trabalho no Estado, anos mais tarde foram para França, como eu fui e acabaram,
através de muito esforço, por ter direito a reformas dignas que, se calhar, cá
não tinham conseguido.”
O
que foi a “Revolta do Pão”
Greve
do Pão ou Revolta do Pão, o episódio sangrento de 12 de Dezembro de 1943
marcou, por muitos anos o imaginário dos nisenses. O que se passou nesse dia
foi sendo esquecido por muitos daqueles que nele participaram. Poucos quiseram
avivar a memória e, quando o faziam, contavam, apenas, fragmentos e pequenas
histórias do que acontecera. Manuel Bugio tem a sua própria versão dos factos e
não teme contá-la.
“Não
houve nenhuma revolta ou greve do pão. Nada foi organizado. Era domingo e dia
de mercado. O povo juntou-se no Rossio e na Porta da Vila e os populares, com
um copo a mais, indignaram-se quando viram chegar o pão a uma das padarias. As
pessoas naquele tempo viam-se “negras”. Os pobres eram “massacrados”, estávamos
em plena guerra mundial, vivia-se à míngua de tudo e o pão foi o “rastilho”
para que as pessoas dessem largas à indignação. Política? A maioria das pessoas
eram analfabetos e com a miséria que havia quem é que se metia em política?
Quem fez disso um caso político foram as autoridades e a repressão a tiro na
Estrada de Alpalhão. Eu perdi um ano da minha mocidade, mas ganhei outros e
fiquei a perceber melhor a podridão que existia em Portugal. Mas , o que
lá vai, lá vai. Quero é acabar os meus dias em paz e sossego, vir até aqui ao
Rossio e rir-me de muitas das histórias que os meus amigos me contam.”
Mário
Mendes in "Fonte Nova" - Gente da Minha Terra - 4/1/2011
FOTOS
1)
Manuel do Rosário Carita (Bugio)
2 e 3) Porta da Vila (Anos 40) – Local onde se iniciou a “Revolta do Pão”
4)
Senha para a tristemente "famosa" Bicha do Pão