quarta-feira, 23 de março de 2016

A “Revolta do Pão” de 1943 em Nisa contada por quem a viveu: Manuel Bugio

Já passaram 67 anos, mas o episódio da “Revolta ou Greve do Pão” no dia 12 de Dezembro de 1943, uma das páginas mais negras e sangrentas da história de Nisa continua viva na memória daqueles que presenciaram ou tomaram parte no acontecimento.Manuel do Rosário Carita ou Manuel Bugio como conhecido em toda a vila, lembra, aos 84 anos de uma vida de encontros e desencontros, o que se passou nesse “dia negro” e nos meses seguintes. Relato na primeira pessoa, com pequenas “entradas” de contexto.
Domingo de festa e de tragédia
“Era domingo e havia baile no “Benfica”. Estive a namorar uma cachopa na “vila” e quando vim de lá deparei-me com uma grande algazarra no Rossio e pus-me a observar o “panorama”.
O povo dizia que tinha vindo o Manuel Vigora com o pão para a padaria do senhor João Mendes na Porta da Vila. O padeiro meteu o pão dentro da padaria e depois não o venderam a toda a gente, só a quem queriam. O pão estava quase todo encomendado, pois estavam lá as bolsas e aí o povo conspirou. Foi ali que começaram o barulho. Alguns, mais exaltados tentaram forçar a porta e sacar o pão que pudessem. Daí vieram para o Rossio onde o povo se juntou. A multidão era cada vez maior e logo ali a GNR prendeu o ti Simplício Tristão e levou-o para o posto. O homem não tinha nada a ver com o protesto e alguém se lembrou de tocar os sinos a rebate, enquanto outros falaram com um vereador da Câmara para que o ti Simplício Tristão fosse libertado, o que veio a acontecer. Mas isso não impediu que o povo acalmasse a sua revolta. O movimento engrossou e do Rossio as pessoas dirigiram-se à “fábrica” ao fundo da Devesa de onde tentaram trazer pão. Depois subiram a Devesa de Traz e dirigiram-se para a Estrada de Alpalhão. Havia baile no “Benfica” e alguns ficaram-se por lá, mas os outros foram em frente e dirigiram-se à padaria do Vigora. É ali, a meio da Estrada de Alpalhão, junto à padaria que se dá o desfecho sangrento. De um momento para o outro, surgem guardas e polícias vindos de Portalegre que começam a disparar sem qualquer aviso. Cada um fugiu para onde pôde. Houve feridos ligeiros e dois feridos com gravidade. Um deles, o João Louro, que nada tinha a ver com aquilo, foi ferido numa perna que teve de ser amputada. Outro, o ti Alfredo Mourato “Galacho” foi ferido nas “partes” (órgãos genitais) sofreu muito e acabou por falecer ao fim de uns meses.”
Não houve presos nessa noite, mas no dia seguinte, a repressão abateu-se sobre inúmeras pessoas, a torto e a direito, tivessem ou não participado naquilo que a acta da sessão da Câmara de 16 de Dezembro descreve como “alteração da ordem pública”. Uma simples suspeita, um nome ouvido à socapa ou a denúncia de alguns dos comerciantes alvo da indignação popular, bastaram para que, em pouco tempo, a cadeia se fosse enchendo de gente que mais não fizera do que pedir um pouco de pão para os seus. Manuel Charrinho, trabalhava nas minas de volfrâmio no Mato da Póvoa. Foi o primeiro a ser preso, ainda o sol não nascera, nessa fria manhã de 13 de Dezembro. Preparava-se para partir, de fatada aviada para mais uma semana de trabalho, mas a PSP de Nisa deu-lhe como primeiro destino a cadeia comarcã. Outros se seguiram nesse dia e durante toda a semana. Manuel Bugio, o nosso interlocutor, não escapou às “boas graças” das autoridades policiais da vila.
Preso sem culpa formada
“Andava a fazer lenha e vim buscar água à “Sucata” (uma serração onde está hoje a secção de Finanças). Nessa altura vinha o Vigora trazer pão à padaria e diz-me: “Tu ainda aí vens?” e eu respondi-lhe – “ Atão onde é que devia estar? Passado pouco tempo veio a polícia buscar-me. Alguém tinha dado o meu nome e sem saber porquê fui “engavetado”, levado para o pé do ti Manuel Charrinho. Durante a semana foram chegando mais presos, ao todo perto de 40 homens, ali despejados a monte, sem condições, cada um dormia como podia, uns no chão outros de pé. Estávamos incomunicáveis, as famílias iam-se revezando durante a madrugada para saber se nós ainda lá estávamos. Não podiam contactar connosco e iam deixando alguma coisa, contando com a benevolência do carcereiro, o ti Manuel Ramos. Ao fim de 10 dias vieram 2 camionetas de Portalegre que nos levaram para os calabouços do Governo Civil. Estivemos lá 41 dias, incomunicáveis, e todos os dias havia interrogatórios. Queriam saber quem era o “cabecilha” do movimento, coisas da política, e todos nós dizíamos o mesmo: não percebíamos nada de política, eu muito menos, porque só tinha 17 anos e que aquilo que acontecera fora apenas uma revolta por causa da falta de pão, feita extemporaneamente, sem cabecilhas ou lá o que fosse. Era domingo, único dia da semana em que os trabalhadores rurais e assalariados tinham livre e aproveitavam para se juntar e beber uns copos. Nos calabouços do Governo Civil estávamos a “monte”. As necessidades eram feitas no mesmo sítio. Não recebíamos visitas. Os familiares iam lá mas não podiam ver-nos, deixavam o que levavam para nos ser entregue. Eram tempos de muita miséria e o Natal de 1943 com os principais activos das famílias presos foi uma tragédia, com muita dor e tristeza.
Os interrogatórios no Governo Civil fizeram uma selecção e ainda hoje não sei porque fui “escolhido” para me juntar aos 17 homens que fomos para Caxias. Atravessámos a cidade de Portalegre a pé e a pé, em pelotão, continuámos até à estação, vigiados por polícias armados como se fôssemos uns criminosos. Foi das coisas que mais me doeu e marcou, o ter de atravessar a cidade sob o olhar das pessoas. Mais tarde compreendi que isso fazia parte da estratégia do regime para mostrar o medo e o terror e apontar-nos como maus exemplos. Seguimos de comboio para Lisboa, sempre rodeados de polícias até à sede da PIDE onde houve mais interrogatórios e daí fomos levados para o forte de Caxias. Fomos fotografados, um a um e de novo interrogados. Estivemos um ano em Caxias e só depois é que fomos julgados no Tribunal da Boa Hora. Sete dos que ficaram em Nisa também lá foram para ser julgados.
O doutor José Rasquilho de Barros, de Amieira do Tejo, foi o nosso advogado oficioso e testemunharam a nosso favor, os doutores Carlos Bento e Aniceto Ferreira Pinto, farmacêutico na Porta da Vila. Todos eles disseram o mesmo, que éramos pessoas de trabalho e nada tínhamos a ver com políticas. O dr. Rasquilho de Barros pediu por Deus ao Juiz que nos pusesse em liberdade e que desse a pena como cumprida àqueles que tinha vindo de Nisa, pois que para sofrimento das famílias já chegava. Saímos do Tribunal direitos a Caxias onde dormimos mais uma noite. Os nossos camaradas que tinham vindo de Nisa tiveram de cumprir uma pena de sete meses e foram ocupar os nossos lugares. No dia seguinte saímos em liberdade e cada um ficou entregue à sua sorte. Para mim, acabara um grande drama. Tinha uma boa “cunha” para ir para a polícia, tal como outros para funções públicas, entre eles o Vasco Barra que já tinha o exame feito para entrar e a partir dali ficou chumbado.”
Os meses no Forte de Caxias
“Não posso dizer muito mal de Caxias, o que não aconteceu com outros que foram maltratados. Era faxina dos próprios guardas que nos guardavam a nós e também fazia trabalhos de jardineiro. Os outros iam trabalhar para o forte em trabalhos mais pesados. Tínhamos 2 horas de recreio e estávamos separados dos outros presos políticos, na sala 9, a sala dos nisenses.
As famílias em Nisa sofriam, as mulheres e os filhos tinham os homens e os pais presos, os seus únicos sustentos e não os podiam ajudar. Os dois homens solteiros no grupo, era eu e o António Veredas. Não posso dizer mal dos guardas de Caxias. Sabiam que não estávamos ali por motivos políticos, muitos deles eram pobres como nós e tinham passado pelas mesmas situações de miséria. Fomos dados como “faxinas” do forte e pessoas honestas.”
O regresso a Nisa
“ No regresso a Nisa fomos bem recebidos, com muita alegria e lágrimas à mistura. O pesadelo para nós, não para todos, tinha acabado. Os que trabalhavam no campo continuaram a trabalhar, sem problemas. Aqueles que esperavam entrar para um trabalho no Estado, anos mais tarde foram para França, como eu fui e acabaram, através de muito esforço, por ter direito a reformas dignas que, se calhar, cá não tinham conseguido.”
O que foi a “Revolta do Pão”
Greve do Pão ou Revolta do Pão, o episódio sangrento de 12 de Dezembro de 1943 marcou, por muitos anos o imaginário dos nisenses. O que se passou nesse dia foi sendo esquecido por muitos daqueles que nele participaram. Poucos quiseram avivar a memória e, quando o faziam, contavam, apenas, fragmentos e pequenas histórias do que acontecera. Manuel Bugio tem a sua própria versão dos factos e não teme contá-la.
“Não houve nenhuma revolta ou greve do pão. Nada foi organizado. Era domingo e dia de mercado. O povo juntou-se no Rossio e na Porta da Vila e os populares, com um copo a mais, indignaram-se quando viram chegar o pão a uma das padarias. As pessoas naquele tempo viam-se “negras”. Os pobres eram “massacrados”, estávamos em plena guerra mundial, vivia-se à míngua de tudo e o pão foi o “rastilho” para que as pessoas dessem largas à indignação. Política? A maioria das pessoas eram analfabetos e com a miséria que havia quem é que se metia em política? Quem fez disso um caso político foram as autoridades e a repressão a tiro na Estrada de Alpalhão. Eu perdi um ano da minha mocidade, mas ganhei outros e fiquei a perceber melhor a podridão que existia em Portugal. Mas, o que lá vai, lá vai. Quero é acabar os meus dias em paz e sossego, vir até aqui ao Rossio e rir-me de muitas das histórias que os meus amigos me contam.”
Mário Mendes in "Fonte Nova" - Gente da Minha Terra - 4/1/2011
FOTOS
1) Manuel do Rosário Carita (Bugio)
2 e 3) Porta da Vila (Anos 40) – Local onde se iniciou a “Revolta do Pão”
4) Senha para a tristemente "famosa" Bicha do Pão