terça-feira, 29 de março de 2016

Evocação de um nisense ilustre: Cruz Malpique (I)

A verdadeira arte de Malpiquizar ( Biografia)
Manuel da Cruz Malpique nasceu na freguesia do Espírito Santo, em Nisa, a 28 de Setembro de 1902. Filho de gente humilde que arrancava à rudeza dos campos, os magros meios de subsistência, cedo Cruz Malpique começou a sentir as agruras da vida.
Em 1918, a pneumónica leva-lhe a mãe e, nesse mesmo ano, no próprio dia em que seguia para Portalegre para frequentar, como externo, o liceu, morre seu tio paterno, o padre António da Piedade Marques, que se tinha revelado como seu protector.
Antes, já Cruz Malpique, para além na vida na lavoura, havia trabalhado nos correios e telégrafos e nas oficinas da Escola Prática de Engenharia, em Tancos.
Graças ao apoio do benfeitor Carlos Moreira da Costa Pinto e após ter concluído o curso liceal, matricula-se, em 1923, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e mais tarde, em 1924, na Faculdade de Letras. Completa ambos os cursos, Direito e Filosofia, em 1928 e depois de frequentar a Escola Normal Supeior, inicia a carreira de professor do Ensino Secundário que o vai levar, sucessivamente, aos Liceus de Gil Vicente e Pedro Nunes, em Lisboa, Faro, Angra do Heroísmo e Luanda.
Esteve em Angola até 1947, leccionando como professor e além das funções docentes, colaborou em vários jornais e revistas, escrevendo grande parte da sua obra literária.
Foi reitor do Liceu Salvador Correia, durante três anos, chefe dos Serviços de Instrução daquela ex-colónia, presidente da Sociedade Cultural de Angola.
De regresso ao país foi professor durante muitos anos ( de 1948 a 1984) no Liceu Alexandre Herculano, no Porto, cidade que considerou como sua terra adoptiva e na qual viria a falecer em 6 de Setembro de 1992.
Cruz Malpique deixou mais de 200 títulos de uma vastíssima obra literária que integra, ainda, " uma enorme catreva de inéditos" por publicar, guardados na Biblioteca Municipal do Porto.
A sua obra percorre campos tão diversos como a filosofia ( o seu grande "amor"), a pedagogia, a análise biográfica, ou a psicologia, revelando uma grande craveira intelectual e mostrando o perfil de um homem humanista. De entre as obras dadas à estampa, num trabalho contínuo e profícuo dedicado às letras, merecem destaque:
"Introdução à vida intelectual" - 1934 - a sua tese de licenciatura, foi dedicada ao Dr. Joaquim de Carvalho, "sábio professor da Universidade de Coimbra", a António Sérgio, com quem conviveu , "à sua inteligência clara e carácter íntegro" e a Carlos Moreira da Costa Pinto; "O Homem, centro do mundo (1936), "Como se faz um escritor" (1939), "O homem de ciência" (1940), "Arte de conversar" (1950), "Psicopedagogia da Curiosidade"( 1952), "Leonardo da Vinci, operário de inteligência" (1952), "O homem, glória e refugo do Universo" (1953), "Filosofia do Plágio" (1955), "Pão para a boca do homem" (1957), "Chávenas de café quase amargo" (1957), "Psicologia literária do homem do Porto" (1958), Cervantes, cidadão do mundo" (1964), "Perspectivas, dificuldades e heresias da Filosofia" (1965), "Sebastião da Gama, poeta de primeira água" (1965), "Miguel de Unamuno e Portugal" (1967), "Linguagem falada e escrita" (1969), "José Régio, alguns aspectos da sua biografia interior" (1971), "Alguns aspectos do perfil psicológico do português" (1974), "Perfil humanístico de Abel Salazar" (1977).
Em 1987, por ocasião do feriado municipal, a Câmara de Nisa homenageou o homem de letras e ilustre filho desta terra, atribuindo-lhe a medalha de mérito municipal e dando o seu nome à rua onde se situa o quartel dos Bombeiros Voluntários.
A Câmara do Porto, por seu turno, aprovou, em Dezembro de 1992, a atribuição do nome de Cruz Malpique a uma rua da freguesia de Ramalde, na cidade invicta.

VIDAS: Isabel Carita - 47 anos a vender pão

 “As grandes superfícies mataram o comércio tradicional”- Isabel Maria Carita
É uma história de vida dedicada ao comércio que merece ser realçada, a da senhora Isabel Maria Carita, 79 anos, viúva, nada e criada em Nisa.
“Comecei com 20 anos a vender na praça (mercado), ao pé dos Correios. Vendia frutos, batatas, hortaliças, melancias, tudo produtos dos terrenos do Dr. Garcia (Veterinário). Ainda vendi no lugar do senhor João Mendes, no Rossio e quando abriu a Praça (Mercado Municipal) fomos para lá.
Tínhamos uma casinha alugada e nas quintas-feiras e domingos, além das frutas e dos legumes, vendíamos também frangos, coelhos, animais criados na horta e abatidos no Matadouro Municipal. Foi um crime, terem deixado acabar o Matadouro, cá em Nisa.
Quando nasceu a minha filha, a minha mãe, coitada, pouco podia ajudar e então abri aqui a venda com os produtos hortícolas do Dr. Veterinário, umas mercearias e pão, que nessa altura foi autorizado a ser vendido nos comércios.
Parece que foi ontem e já passaram 47 anos, todos os dias a levantar-me às seis da manhã.
Comecei a vender pão do senhor Branco, mais tarde do senhor Virgílio, do senhor Andrade (Fábrica) e do Monte Claro.”
Ganhou a sua própria clientela, uma clientela fiel, desde há muitos anos, a par de outras pessoas que passam na estrada e ali se detém, pela simplicidade da venda e pela simpatia da vendedora, não falando da fama do pão do Monte Claro.
Isabel Carita, como comerciante experiente, não aponta preferências, apenas vai dizendo que o pão do Monte Claro é, talvez, mais procurado, por ser feito (cozido) em forno de lenha.
Discrição, amabilidade e simpatia têm sido as “armas” de Isabel Maria Carita. Nos seus 79 anos de vida e de quase meio século, a contactar com o público, diz nunca ter tido o mais pequeno problema.
A sua casa, loja, venda, na Estrada da Fonte da Pipa é um exemplo de estabelecimento onde o asseio e a arrumação saltam à vista.
Os senhores da UE valorizam pouco, quase nada, estas vendas e locais de convívio, onde o atendimento é pessoal e quase familiar.
O pão do dia ou os bolos que a senhora Isabel vende, são, sempre, um primeiro passo para uma conversa, que ajuda a manter as relações de sã convivência entre uma comunidade.
Aos 79 anos, para a maioria das pessoas, já seria tempo suficiente para “embarcar” na reforma e no descanso. Não pensa assim, Isabel Carita, para quem a sua venda não é, apenas um lugar de negócio, mas um espaço de motivação e de ajuda para se sentir válida no dia a dia, não permitindo que a rotina e o abandono, progressivo, da vida, se instale.
A vontade de manter o seu posto, servindo os seus clientes e amigos, parece ter chegado ao fim, face às exigências da lei. Continuar, significaria a transformação da loja, um vultoso investimento em obras e mobiliário que a sua idade já não aconselha.
“Fico muito triste. São muitos anos nesta vida, a vender pão, a conversar com as pessoas. Levanto-me de manhãzinha bem cedo e começo logo a conversar, a girar para aqui e ali. E agora?”
E, agora, senhora Isabel? O que dirão centenas, talvez, milhares de pessoas com situação semelhante à sua?
A CEE, a UE ou lá o raio que é, parece importar-se pouco com a destruição do frágil tecido comercial e industrial das aldeias e vilas.
Importante, mesmo, são as “normas”, as imposições, o pão, o queijo, os produtos “bacteriologicamente puros”, sabendo a coisa nenhuma.
Importante para os tecnocratas que nos (des)governam é o invólucro, a embalagem.
Mário Mendes in "Jornal de Nisa" - nº 245 - 19 Dez.07

FIGURAS POPULARES DE NISA: O Senhor Alberto

Gosto de fazer viagens à minha infância.
Redescobrir mundos e lugares, pessoas e tradições que o tempo corroeu. Gosto de me embrenhar no tempo, de reinventar sensações, de correr célere pelos caminhos da minha meninice.
Como era diferente essa época...
Percorríamos ruas e becos, chãos e tapadas, azinhagas, brincávamos aqui e ali, onde calhava, com um prazer sempre renovado.
Havia também as pessoas que entravam na nossa vida e que ajudavam a transformar esse mundo infantil, povoado de sonhos e fantasia.
O Senhor Alberto era uma dessas figuras.
Era um velho carpinteiro que tinha a sua oficina numa das ruelas da vila, ali a dois passos da “Praça”.
Vivia só e mal, como quase todos os artistas daqueles negros tempos, mas nunca lhe ouvi um queixume, uma frase mais azeda ou a despropósito.
De resto, falava pouco, sempre metido consigo próprio, abrindo excepção quando contactava com as crianças que amiúde o visitavam.
O sorriso espontâneo com que nos recebia denotava uma grande afeição e ternura. Via-se, claramente, que gostava de crianças...
De outro modo não permitiria a “invasão” da sua modesta e acanhada oficina nem a desarrumação em que a deixávamos. Tive sempre a sensação que representávamos para ele, sei lá, um mundo, uma parte importante da sua vida, abruptamente cortada.
A sua fabriqueta, na pequena casa da rua da Cadeia, dispunha de um torno e uma bancada, num espaço bastante reduzido.

Ali se encontravam, no mais completo desalinho – que nós ajudávamos a tornar pior – os mais diversos objectos: partes de cadeiras, de móveis, janelas, madeiras por trabalhar, ferramentas. Um “caos”.
O torno era o seu principal instrumento de labor, onde vagarosa mas habilmente ia dando forma aos mais (para nós) complicados trabalhos de carpintaria fina.
Ali passei, com outros companheiros de escola e de brinca, muitas tardes observando aquele velho e paciente artífice, que nos dirigia – qual avô universal – palavras de afecto e carinho.
Tinha uns olhos encovados, o Senhor Alberto. Neles se vislumbrava, bem no fundo, uma grande melancolia.
O sofrimento não deve ter poupado aquele homem bondoso.
O cabelo, já um tanto descomposto e gasto, descia-lhe pela cabeça em pequenas falripas. Um bigodinho branco da cor do cabelo, ajudavam-lhe o sorriso com que corajosamente nos enfrentava.
As suas mãos pequenas, de artista, faziam prodígios nos trabalhos que lhe pedíamos:
- Senhor Alberto, faça-me daqui uma bitôrra! (1).
E estendíamos-lhe um pedaço de azinho, a que ele sucessivamente ia dando formas até o transformar num objecto de brincadeira.
Doze, quinze tostões, às vezes apenas um sorriso, bastavam para o seu apreciado trabalho.
E lá íamos, contentes, para a “Praça”, para os “Postigos ou para a Porta de Montalvão, fazer uso público daquele brinquedo.
O Senhor Alberto e a casa onde morava há muito que deixaram de existir. O camartelo destruiu aquele velho edifício e no seu lugar surgiu outro mais moderno e mais feio também.
Mas, quando ali passo, recordo sempre, num misto de alegria e saudade, o Senhor Alberto, artista de bitôrras e piões, construtor de sonhos da minha infância.
(1) – Bitôrra: pião mais redondo e mais aperfeiçoado.

Mário Mendes

sexta-feira, 25 de março de 2016

CONTOS DO CHÃO DA VELHA: A História da Navalha

A jusante da foz do Rio Nisa, na margem esquerda do Tejo, uma linha de oliveiras mais frondosas servem de paragens aos pastores daquela área. Isto no decorrer de muitos anos.
Ali se faziam as permutas entre pescadores e pastores. Os pastores ofereciam leite aos pescadores. Estes pescavam peixe para os pastores e ambos se consolavam variando o prato do dia a dia.
Sob essas oliveiras durante o acaro*, numa tarde de Verão, dois jovens pastores trocavam impressões e merendavam.
Um deles, ao tirar o pão, o queijo, o canivete – a navalha, melhor dizendo – do sarrão, disse para o companheiro que estava farto daquela navalha. Há tantos anos, já tão velha, um podão autêntico.
Pega nela e atira-a para o fundo da ribanceira.
Conversaram, comeram, e à tarde, quando o gado regressava ao Chão da Velha, o outro troca as voltas, procura a navalha e próximo da povoação encontram-se. Sem que o primeiro desse por ela, o outro coloca-lhe a navalha no sarrão.

Em casa, à ceia, quando aquele que se queria desfazer da navalha tira o resto pão para comer e depara com a respectiva navalha, fica espantado, como que aturdido, não acreditando ser a mesma navalha da qual ele se queria desfazer.
No dia seguinte, encontra-se com o companheiro, conta-lhe o sucedido, o outro faz-se descrente, e chama a atenção se não se lembra de ele a ter arremessado lá pró fundo da barreira. E ele diz que sim e que isso seria impossível, que haveria bruxedo, etc.
Bem, nesse segundo dia, o mesmo protagonista atira a navalha muito para além e cai já no leito do rio, em seco, evidentemente, no meio de cascalhos rolados.
O segundo repete a mesma façanha e o outro mais espantado fica, à noite, quando volta a encontrar a maldita navalha da qual não se conseguia desfazer.
Mais espantado ainda lhe conta. O outro faz-se descrente, incrédulo e, pela terceira vez, atira-a para a água. Nesse local, em frente das oliveiras, havia um cachão, portanto com ligeiro declive, água pouco profunda e ambos vêem que a navalha cai dentro de água.
O mesmo parodiante, volta a trocar as voltas ao primeiro, regressa ao Tejo, pesquisa, encontra a navalha e volta a colocá-la no sarrão do primeiro.
Então, no último dia, o outro dá-se por vencido e desiste de se desfazer da navalha, porque já tentou tudo sem que conseguisse os seus objectivos.
E é esta a história da navalha, entre os dois pastores do Chão da Velha.
* Acaro – Sítio para resguardar o gado do sol.
F. Henriques e J. Caninhas – “Contos populares do Cortelhões e Pilingacheiros”

CANTINHO DO EMIGRANTE: Onde estão os homens bons de Nisa?

Ai! Como o tempo passa, pois, já lá vão 40 anos e ainda me lembro da primeira televisão que apareceu em Nisa.
Não sei se é bom falar de pessoas que fizeram parte deste mundo, mas em poucas linhas, vou assim recordá-lo e descrevê-lo, tal como ele era, considerando-o um “homem bom” da nossa terra.
Os mais ricos davam esmolas, pois “quem dá aos pobres empresta a Deus”, ditado que aprendi no livro da primeira classe. Mas, como ele não podia dar esmolas e pensando sempre nos outros, todos os dias o bom do homem instalava a sua televisão na vitrina da sua loja comercial, virada para a rua para que os habitantes de Nisa a pudessem ver.
O homem que se prestava, diariamente, a partilhar o “seu” televisor era, nem mais nem menos, o senhor Isaac Araújo que com grande humor e boa disposição, satisfazia assim as nossas ilusões.
A Praça da República, nessa altura parecia mais um cinema ao ar livre que outra coisa, dado que as crianças e os adultos vindos dos quatro cantos da vila, traziam consigo cadeiras, “tropeças”, para se instalarem em frente do pequeno écran televisivo.
Num desses dias lá estavam também os nossos pais, instalados, depois de um dia de trabalho árduo no campo e não sentindo o cansaço da lavoura, da ceifa e de outras penosas tarefas.
Lembro-me bem, era a reportagem da Volta a Portugal em Bicicleta, era Verão e lá estávamos nós para aplaudirmos os nossos “ases do pedal”, simpatizando uns com o Alves Barbosa, outros torcendo pelo Ribeiro da Silva. Nesse dia não chegámos a aplaudir os nossos ídolos, pois que o nosso “cinema” teve que se evacuado devido a forte trovoada que apagou a televisão e nos fez chegar a casa repassados pela chuva que caíra.
No dia seguinte tínhamos esquecido o percalço e lá estávamos novamente, com os gaiatos a chegarem primeiro e a ocuparem os lugares da frente, mesmo “colados” à montra. Outros preferiam ir ver na vitrina do Café dos Ricos, como chamávamos ao Café Park (hoje encerrado) que tinha também televisão, não voltada para a rua, mas que vaiamos através dos espelhos.
Enfim, tempos que já não voltam. Mais tarde no “velho” salão do Sport Nisa e Benfica, a direcção mandou instalar um televisor para os sócios e nós, os mais jovens para lá nos mudámos e onde víamos os episódios preferidos: “ O Homem Invisível”, Os Quatro Homens Justos”, Zorro, Ivanhoe, Robin dos Bosques, Danger Man, etc., sendo o Bonanza o preferido pela maioria.
Desta série recordo que a malta tinha as suas preferências, simpatizando uns com o Adam, outros com o gordo Hoss, outros ainda com o Joe, havendo também aqueles que desinteressados da televisão, brincava ao “monta a cavalo”, à “zuca”, ou à “cabra-cega”, até que aparecessem os mais “poderosos”, pois naquele tempo todos tinham medo da guarda (GNR).
Ao terminar esta crónica queria homenagear os “homens do bons” da nossa terra, homens que com o seu gesto, tão simples por vezes, sempre souberam conquistar os nossos corações.
António Conicha – “Jornal de Nisa”- 6/1/1999

quinta-feira, 24 de março de 2016

À FLOR DA PELE: Domingos Paixão - o Homem das Ervas Milagrosas

 Completou em Julho, 95 anos, este homem de rosto largo e de mil vivências. Andou pela França e pela Espanha, aprendeu a ler, já homem feito, nas aulas regimentais, enquanto impedido do general Domingos de Oliveira, máxima figura militar no tempo de Salazar. Ao gosto pela leitura juntou um outro ligado às "coisas do campo": a descoberta das propriedades curativas das plantas e das argilas. A paixão pelas "ervas milagrosas" na versão do ti Domingos Semedo de Matos.
Nasceu em Montalvão, ainda o século vinte estava na puberdade, mas mostrava, já, as imagens dos conflitos armados, das doenças e da crise económica, mundial, que iria influenciar a vida de Domingos Semedo de Matos, nascido numa família de fracos recursos e obrigado a compartilhar com três irmãos a côdea de pão do sustento familiar.
Vida extrema, difícil, num lugar do interior, distante de tudo, até do essencial para se viver.
" Os meus pais trabalhavam no campo, eram jornaleiros. Vivia-se mal e logo aos sete anos fui guardar gado. Estive como pastor até aos 10 anos e aos 11 fui trabalhar para as grandes obras de construção da Barragem da Póvoa e Meadas, como servente. Havia lá muita rapaziada de Montalvão, da Póvoa e Meadas e de Castelo de Vide. Dormíamos lá e cada um cozinhava para si. O meu pai estava em França e juntou-se comigo a trabalhar na Barragem. Um ano depois resolveu ir para a ceifa em Espanha, na serra de Santiago e eu fui com ele ganhando menos mas fazendo o mesmo trabalho que os homens. Foi esta a minha escola. Quando terminou esta campanha, o meu pai resolveu ir novamente para França e eu acompanhei-o. Fomos a salto, éramos sete só de Montalvão, isto em 1929. Andámos muito tempo a pé e de comboio.
Em Hendaya havia vários empreiteiros à espera de quem chegasse de Espanha ou de Portugal para trabalhar e nós fomos contratados para umas minas de perto de Marselha. Era um trabalho muito duro, mas compensava. As minas produziam um comboio de carvão, todos os dias, extraído à força do braço. Legalizámo-nos ao fim de 22 meses e podíamos trabalhar em qualquer sítio de França. Foi assim que conheci um pouco daquele país, como Lyon, Paris, Bierzon. Regressámos a Montalvão ao fim de três anos. Aqui toda a gente se ocupava a trabalhar no campo e nós fizemos o mesmo em todos os serviços, a trabalhar de sol a sol."
Chegava a idade da vida militar, dever a que Domingos Paixão não pôde eximir-se.
" Em 1936, com vinte anos, fui à inspecção militar com muito gosto, pois não sabia ler, tinha uma grande fortaleza e sempre ouvira dizer que se aprendia a ler na tropa. Era o que eu mais queria. Depois da instrução fiquei colocado na Companhia Tripomóvel Montada. O quartel dava impedimentos e eu tive a sorte de ficar como impedido do senhor governador militar de Lisboa, general Domingos de Oliveira. Tirei a 4ª classe, fiz uns exames maravilhosos e ao mesmo tempo tratava de quatro cavalos do senhor general que muito me considerava. Depois de três anos na tropa, já podia meter os papéis para qualquer serviço e assim entrei para a GNR em 1941, onde estive 27 anos. Desde Lisboa ao Alandroal, Crato, Nisa, Marvão, Gáfete e novamente Lisboa."

Casou aos 26 anos, tem quatro filhos, 11 netos e 7 bisnetos. A esposa morreu-lhe há 14 anos e reformado desde os 52, Domingos Paixão retornou a Montalvão, às terras da raia. É aqui, verdadeiramente, que começa a paixão pelas ervas com poderes medicinais.
"Eu herdei da minha mãe o gosto pelas plantas. A minha mãe com 83 anos ainda usava as ervas dos campos para uso dela e para dar às vizinhas. Há 80 anos atrás quem que tinha posses para ir à botica? Além dos tratamentos com plantas e as mézinhas caseiras serem muito mais eficazes. Era assim que tratavam as maleitas, qualquer doença naquele tempo. Eu sempre que vinha a Montalvão, ainda estava na GNR, o meu sentido era para as plantas. Comecei a tratar pessoas com 28 anos e não comecei mais cedo porque a vida não permitia. Comecei por massajar em qualquer parte do corpo, sem ter qualquer conhecimento de medicina e tenho tratado muita gente, todos aqueles que me procuram."
Não sabe explicar o "dom", sabe, isso sim que gosta de tratar as pessoas e que tem tratamento para quase todas as doenças, desde que o paciente saiba dar tempo ao tempo.
"Pelas portas por onde passei desenrasquei as pessoas que me pediram, fosse endireitar um dedo do pé, as costelas, o pescoço, as costas ou qualquer extensão fora do seu lugar. Vou todos os dias para o campo e conheço todas as plantas, mais de 300. Tenho um ficheiro escrito à mão, onde explico o nome das plantas, os fins para que servem, as doenças que combatem e como devem ser aplicadas. Conheço também as propriedades terapêuticas da argila, pois há 40 anos que trabalho com ela, um dos mais poderosos meios naturais de atacar as doenças e que pode ser aplicada em qualquer parte do corpo humano e até nos animais com fins curativos".

A sua casa no Bairro do Bernardino, na entrada de Montalvão, é um verdadeiro "museu das ciências naturais ". Há argila de todas as cores, uma variedade incontável de plantas, devidamente catalogadas com os nomes científicos e populares, com a descrição pormenorizada dos fins a que se destinam. Possui mais de 900 caixas com ervas, uma quantidade enorme de diversas argilas e este valioso espólio que representa muitos anos de trabalho dedicado é a sua grande preocupação. Agora, com mais de 95 anos, o ti Domingos gostaria que alguém se interessasse pela sua arte das plantas curativas, a divulgasse e que não se perdesse tão valioso acervo do nosso património cultural tradicional.
Deixa, por isso, um apelo, quer aos profissionais e comerciantes do ramo das plantas medicinais, quer às entidades autárquicas, no sentido de não deixarem que se perca um espólio que considera valioso, não só do ponto de vista económico, mas, sobretudo, carregado de afectividade.
Mário Mendes - À Flor da Pele in "Alto Alentejo" - 7/9/2011

CANTINHO DO EMIGRANTE: As tabernas

Em Nisa noutros tempos chegaram a ser mais de trinta tabernas, hoje apenas restam quatro, todas elas ainda mantendo as suas características antigas: portas “vai e vem” com vidros às cores, balcão de madeira, torneira para lavar os copos, “esquenho” ou banco corrido para os clientes se sentarem, faltando apenas as barricas de madeira ou os potes de barro, porque o aprovisionamento do vinho, agora, é feito em garrafões.
Na realidade, é triste ver-se desaparecer estas riquezas típicas que noutros tempos faziam parte do nosso património cultural, por isso as restantes merecem ser salvaguardadas, pedindo aos seus proprietários ou a alguém de direito, que as preservem o mais tempo possível, porque as “tascas” também são um ex-libris.
Quem é que não se lembra das “sortes” (inspecção militar), ou dos casamentos à moda de Nisa, quando os homens as visitavam, todas, ao som da concertina do Zé Casimiro ou do Manel Bicho, onde o fandango e as desgarradas eram permanentes nesses dias festivos?
As tabernas já foram um lugar de convívio, onde se podia jogar ao bêlho (fito), hoje proibido pela lei local, não esquecendo que, com esta decisão legal, perdeu-se uma das poucas tradições e não só, como também o negócio dos taberneiros começou a fraquejar.
Ali, nas tabernas, entravam ricos e pobres, poetas populares e doutores. Contavam-se histórias, chorava-se, ria-se, cantava-se, dançava-se, desabafava-se das alegrias e das tristezas ou das mágoas e dos desgostos, até se arranjava trabalho ou pagavam-se as dívidas. Faziam-se desfaziam-se negócios.
Ali se sabiam, também, as novidades mais íntimas e sentimentais de cada um, por vezes também havia zaragatas, quando os copos de “ametade”” começavam a subir à cabeça.
Era, na realidade, um local de “mata-bicho”, logo pela manhã cedo. Alguns não se davam por rogados e pediam: “venham lá mais uns “tintóles” aqui para nós e assenta aí no livro que eu logo venho pagar”.
O taberneiro servia a rodada, sempre acompanhada de umas “línguas de gato” ou de uns tremoços, nunca se esquecendo do lápis de dois bicos, que usava atrás da orelha.
Num daqueles momentos espreitava à porta a mulher de um dos clientes, chamando o marido e avisando-o para que não gastasse a “jorna” da semana, porque isso era frequente naquele tempo.
Um, mais curioso, perguntava ao taberneiro: “onde é que foste ver desta “pomada” que é mesmo de “arromba”?
Outro, dizia: “serve lá mais uns copos à gente e dá aí um pirolito ao cachopo!”.
Esta crónica é a título de homenagem ao ti Aníbal Chapim, Manuel Siopa, Zé Bugalhinha e ao senhor António Tigelinhas, com a esperança de que eles possam preservar este património, ainda por muito tempo.
Agora, deixo-vos com uma anedota.
“Um bêbado lê no jornal que um camelo pode trabalhar oito dias seguidos sem beber e diz-lhe outro amigo do copo: É curioso, eu sou exactamente o contrário, pois posso beber oito dias seguidos sem trabalhar!”.

 António Mourato (Conixa)

quarta-feira, 23 de março de 2016

A “Revolta do Pão” de 1943 em Nisa contada por quem a viveu: Manuel Bugio

Já passaram 67 anos, mas o episódio da “Revolta ou Greve do Pão” no dia 12 de Dezembro de 1943, uma das páginas mais negras e sangrentas da história de Nisa continua viva na memória daqueles que presenciaram ou tomaram parte no acontecimento.Manuel do Rosário Carita ou Manuel Bugio como conhecido em toda a vila, lembra, aos 84 anos de uma vida de encontros e desencontros, o que se passou nesse “dia negro” e nos meses seguintes. Relato na primeira pessoa, com pequenas “entradas” de contexto.
Domingo de festa e de tragédia
“Era domingo e havia baile no “Benfica”. Estive a namorar uma cachopa na “vila” e quando vim de lá deparei-me com uma grande algazarra no Rossio e pus-me a observar o “panorama”.
O povo dizia que tinha vindo o Manuel Vigora com o pão para a padaria do senhor João Mendes na Porta da Vila. O padeiro meteu o pão dentro da padaria e depois não o venderam a toda a gente, só a quem queriam. O pão estava quase todo encomendado, pois estavam lá as bolsas e aí o povo conspirou. Foi ali que começaram o barulho. Alguns, mais exaltados tentaram forçar a porta e sacar o pão que pudessem. Daí vieram para o Rossio onde o povo se juntou. A multidão era cada vez maior e logo ali a GNR prendeu o ti Simplício Tristão e levou-o para o posto. O homem não tinha nada a ver com o protesto e alguém se lembrou de tocar os sinos a rebate, enquanto outros falaram com um vereador da Câmara para que o ti Simplício Tristão fosse libertado, o que veio a acontecer. Mas isso não impediu que o povo acalmasse a sua revolta. O movimento engrossou e do Rossio as pessoas dirigiram-se à “fábrica” ao fundo da Devesa de onde tentaram trazer pão. Depois subiram a Devesa de Traz e dirigiram-se para a Estrada de Alpalhão. Havia baile no “Benfica” e alguns ficaram-se por lá, mas os outros foram em frente e dirigiram-se à padaria do Vigora. É ali, a meio da Estrada de Alpalhão, junto à padaria que se dá o desfecho sangrento. De um momento para o outro, surgem guardas e polícias vindos de Portalegre que começam a disparar sem qualquer aviso. Cada um fugiu para onde pôde. Houve feridos ligeiros e dois feridos com gravidade. Um deles, o João Louro, que nada tinha a ver com aquilo, foi ferido numa perna que teve de ser amputada. Outro, o ti Alfredo Mourato “Galacho” foi ferido nas “partes” (órgãos genitais) sofreu muito e acabou por falecer ao fim de uns meses.”
Não houve presos nessa noite, mas no dia seguinte, a repressão abateu-se sobre inúmeras pessoas, a torto e a direito, tivessem ou não participado naquilo que a acta da sessão da Câmara de 16 de Dezembro descreve como “alteração da ordem pública”. Uma simples suspeita, um nome ouvido à socapa ou a denúncia de alguns dos comerciantes alvo da indignação popular, bastaram para que, em pouco tempo, a cadeia se fosse enchendo de gente que mais não fizera do que pedir um pouco de pão para os seus. Manuel Charrinho, trabalhava nas minas de volfrâmio no Mato da Póvoa. Foi o primeiro a ser preso, ainda o sol não nascera, nessa fria manhã de 13 de Dezembro. Preparava-se para partir, de fatada aviada para mais uma semana de trabalho, mas a PSP de Nisa deu-lhe como primeiro destino a cadeia comarcã. Outros se seguiram nesse dia e durante toda a semana. Manuel Bugio, o nosso interlocutor, não escapou às “boas graças” das autoridades policiais da vila.
Preso sem culpa formada
“Andava a fazer lenha e vim buscar água à “Sucata” (uma serração onde está hoje a secção de Finanças). Nessa altura vinha o Vigora trazer pão à padaria e diz-me: “Tu ainda aí vens?” e eu respondi-lhe – “ Atão onde é que devia estar? Passado pouco tempo veio a polícia buscar-me. Alguém tinha dado o meu nome e sem saber porquê fui “engavetado”, levado para o pé do ti Manuel Charrinho. Durante a semana foram chegando mais presos, ao todo perto de 40 homens, ali despejados a monte, sem condições, cada um dormia como podia, uns no chão outros de pé. Estávamos incomunicáveis, as famílias iam-se revezando durante a madrugada para saber se nós ainda lá estávamos. Não podiam contactar connosco e iam deixando alguma coisa, contando com a benevolência do carcereiro, o ti Manuel Ramos. Ao fim de 10 dias vieram 2 camionetas de Portalegre que nos levaram para os calabouços do Governo Civil. Estivemos lá 41 dias, incomunicáveis, e todos os dias havia interrogatórios. Queriam saber quem era o “cabecilha” do movimento, coisas da política, e todos nós dizíamos o mesmo: não percebíamos nada de política, eu muito menos, porque só tinha 17 anos e que aquilo que acontecera fora apenas uma revolta por causa da falta de pão, feita extemporaneamente, sem cabecilhas ou lá o que fosse. Era domingo, único dia da semana em que os trabalhadores rurais e assalariados tinham livre e aproveitavam para se juntar e beber uns copos. Nos calabouços do Governo Civil estávamos a “monte”. As necessidades eram feitas no mesmo sítio. Não recebíamos visitas. Os familiares iam lá mas não podiam ver-nos, deixavam o que levavam para nos ser entregue. Eram tempos de muita miséria e o Natal de 1943 com os principais activos das famílias presos foi uma tragédia, com muita dor e tristeza.
Os interrogatórios no Governo Civil fizeram uma selecção e ainda hoje não sei porque fui “escolhido” para me juntar aos 17 homens que fomos para Caxias. Atravessámos a cidade de Portalegre a pé e a pé, em pelotão, continuámos até à estação, vigiados por polícias armados como se fôssemos uns criminosos. Foi das coisas que mais me doeu e marcou, o ter de atravessar a cidade sob o olhar das pessoas. Mais tarde compreendi que isso fazia parte da estratégia do regime para mostrar o medo e o terror e apontar-nos como maus exemplos. Seguimos de comboio para Lisboa, sempre rodeados de polícias até à sede da PIDE onde houve mais interrogatórios e daí fomos levados para o forte de Caxias. Fomos fotografados, um a um e de novo interrogados. Estivemos um ano em Caxias e só depois é que fomos julgados no Tribunal da Boa Hora. Sete dos que ficaram em Nisa também lá foram para ser julgados.
O doutor José Rasquilho de Barros, de Amieira do Tejo, foi o nosso advogado oficioso e testemunharam a nosso favor, os doutores Carlos Bento e Aniceto Ferreira Pinto, farmacêutico na Porta da Vila. Todos eles disseram o mesmo, que éramos pessoas de trabalho e nada tínhamos a ver com políticas. O dr. Rasquilho de Barros pediu por Deus ao Juiz que nos pusesse em liberdade e que desse a pena como cumprida àqueles que tinha vindo de Nisa, pois que para sofrimento das famílias já chegava. Saímos do Tribunal direitos a Caxias onde dormimos mais uma noite. Os nossos camaradas que tinham vindo de Nisa tiveram de cumprir uma pena de sete meses e foram ocupar os nossos lugares. No dia seguinte saímos em liberdade e cada um ficou entregue à sua sorte. Para mim, acabara um grande drama. Tinha uma boa “cunha” para ir para a polícia, tal como outros para funções públicas, entre eles o Vasco Barra que já tinha o exame feito para entrar e a partir dali ficou chumbado.”
Os meses no Forte de Caxias
“Não posso dizer muito mal de Caxias, o que não aconteceu com outros que foram maltratados. Era faxina dos próprios guardas que nos guardavam a nós e também fazia trabalhos de jardineiro. Os outros iam trabalhar para o forte em trabalhos mais pesados. Tínhamos 2 horas de recreio e estávamos separados dos outros presos políticos, na sala 9, a sala dos nisenses.
As famílias em Nisa sofriam, as mulheres e os filhos tinham os homens e os pais presos, os seus únicos sustentos e não os podiam ajudar. Os dois homens solteiros no grupo, era eu e o António Veredas. Não posso dizer mal dos guardas de Caxias. Sabiam que não estávamos ali por motivos políticos, muitos deles eram pobres como nós e tinham passado pelas mesmas situações de miséria. Fomos dados como “faxinas” do forte e pessoas honestas.”
O regresso a Nisa
“ No regresso a Nisa fomos bem recebidos, com muita alegria e lágrimas à mistura. O pesadelo para nós, não para todos, tinha acabado. Os que trabalhavam no campo continuaram a trabalhar, sem problemas. Aqueles que esperavam entrar para um trabalho no Estado, anos mais tarde foram para França, como eu fui e acabaram, através de muito esforço, por ter direito a reformas dignas que, se calhar, cá não tinham conseguido.”
O que foi a “Revolta do Pão”
Greve do Pão ou Revolta do Pão, o episódio sangrento de 12 de Dezembro de 1943 marcou, por muitos anos o imaginário dos nisenses. O que se passou nesse dia foi sendo esquecido por muitos daqueles que nele participaram. Poucos quiseram avivar a memória e, quando o faziam, contavam, apenas, fragmentos e pequenas histórias do que acontecera. Manuel Bugio tem a sua própria versão dos factos e não teme contá-la.
“Não houve nenhuma revolta ou greve do pão. Nada foi organizado. Era domingo e dia de mercado. O povo juntou-se no Rossio e na Porta da Vila e os populares, com um copo a mais, indignaram-se quando viram chegar o pão a uma das padarias. As pessoas naquele tempo viam-se “negras”. Os pobres eram “massacrados”, estávamos em plena guerra mundial, vivia-se à míngua de tudo e o pão foi o “rastilho” para que as pessoas dessem largas à indignação. Política? A maioria das pessoas eram analfabetos e com a miséria que havia quem é que se metia em política? Quem fez disso um caso político foram as autoridades e a repressão a tiro na Estrada de Alpalhão. Eu perdi um ano da minha mocidade, mas ganhei outros e fiquei a perceber melhor a podridão que existia em Portugal. Mas, o que lá vai, lá vai. Quero é acabar os meus dias em paz e sossego, vir até aqui ao Rossio e rir-me de muitas das histórias que os meus amigos me contam.”
Mário Mendes in "Fonte Nova" - Gente da Minha Terra - 4/1/2011
FOTOS
1) Manuel do Rosário Carita (Bugio)
2 e 3) Porta da Vila (Anos 40) – Local onde se iniciou a “Revolta do Pão”
4) Senha para a tristemente "famosa" Bicha do Pão

HISTÓRIA LOCAL: O Culto de Santo António pelo povo de Arez

O texto que apresentamos da autoria de Teresa Subtil e publicado em 1998, trata do culto popular a Santo António, em Arez. O artigo começa por fazer uma introdução biográfica sobre a figura de Santo António, e desenvolvendo, depois, algumas explicações sobre a importância e a popularidade deste Santo, nas tradições nacionais. Transcrevemos, aqui, a parte, respeitante a Arez, objectivo central do texto.
As manifestações do culto de Santo António em Arez
Em Portugal não existe um dia específico para as manifestações do culto a Santo António; existem sim, vários dias de culto local cujo impacto e celebridade são variáveis. Estes mesmos dias, ainda hoje celebrados, são o reflexo vivo da importância deste Santo na pregação da religião. A tradição de Arez é disso um exemplo.
Primeiro, existem dois tipos de manifestações de culto a Santo António na freguesia de que estamos a tratar, são elas:
- A Romaria à Capela deste mesmo Santo, culto de já há vários séculos, que ocorre na 2ª feira a seguir ao dia de Páscoa, junto à Capela rural do séc. XIV, por sua vez situada a 3 Km da povoação de Arez e cuja construção está ligada à lenda que iremos apresentar em seguida. Esta romaria é, sem dúvida alguma, o testemunho vivo da simbiose entre o espírito de festa e fertilidade das gentes do campo e a prática da religião correspondente aos anseios dessas mesmas gentes da terra. O seu objectivo consiste em aproximar os diversos grupos familiares que vão até à Capela orar, do seu modo, ao Santo António; outrora poder-se-ia encontrar a imagem deste Santo durante todo o ano na Capela, contudo, hoje, a imagem encontra-se na Igreja Matriz de Arez, de onde é levada no referido dia, para o campo com o intuito de se lhe fazer em honra uma procissão e, um convívio com refeição durante todo o dia.
- As festas de Verão em honra de Santo António são uma outra tradição, ainda que um pouco mais recente, também são reflexo secular da identidade do culto com as gentes do campo e os seus princípios mais sagrados, como por exemplo os de fertilidade e alegria.
Esta tradição decorre no primeiro fim de semana de Agosto e na 2ª feira que se lhe segue; antigamente a festa coincidia com a feira anual, sendo também feitas outras manifestações de gosto popular como por exemplo, o arraial nocturno, a tourada à vara larga, a alvorada no Domingo, seguida de uma missa e uma procissão cujo acto de se enfeitarem os andores com flores e fitas e, se levarem colchas no meio da procissão, onde se depositam esmolas para a igreja e/ou Comissão de Festas, vai de encontro aos princípios de fertilidade do povo que se uniram, numa relação de interdependência, à religião.
Actualmente é um pouco diferente, já não se faz a feira, fazem-se sim outras acções mais aptas ao espírito do tempo, é-nos disto exemplo o tiro aos pratos e as várias provas de atletismo.
Uma outra forma para comprovar a simbiose entre a religião e as crenças pagãs são as lendas e a já referida lenda da Capela de Santo António, abaixo narrada é-nos disso testemunho.
Para concluir, temos que deixar claro que tudo isto é válido na compreensão do processo religioso das gentes do sul: gente agarrada à terra, de grande alegria, mas não menos crente por isso. Gente que ainda hoje vive religiosamente de acordo com os seus anseios.
Destruir estas tradições, seria o mesmo que exterminar a identidade interminável de um povo, maioritariamente idos, com princípios já muito enraizados. Seria o mesmo que tentar abalar os únicos potenciais que ainda restam às povoações do interior, cuja localização geográfica não é favorável a outras formas de exploração que não sejam as turísticas.

O caminho ideal, para não fazer destas freguesias um deserto - e, agora falamos em particular de Arez – está longe de ser alcançado. No entanto, cabe-nos a todos nós valorizar os seus únicos potenciais, a tradição.
Só tendo este gosto valorativo e compreensivo, sem cair em excessos, é que podem ir surgindo planos imaginativos e racionalizados para o aproveitamento destes potenciais.
Teresa Subtil in “O Distrito de Portalegre” – 3/7/1998

domingo, 20 de março de 2016

MEMÓRIA DE NISA: O Rossio de "fora" e o Rossio de "dentro"

As grades do jardim público de Nisa- Alguns elementos para a sua história *
Tal como os edifícios, as pontes e outras obras de engenharia - civil ou militar - também as pequenas estruturas que modelam o espaço urbano ou rural, têm a sua história.
A do gradeamento do jardim público não deixa de ser curiosa, por estar (ficar) ligada a alguns factos e circunstâncias políticas, desde a sua implantação até, agora, à sua remoção (arranque). Uma história que se conta com o recurso à consulta de documentos do acervo do Arquivo Histórico de Nisa. Tantas e gostosas histórias que o mesmo encerra...
Um gradeamento "monárquico" e "republicano"
A ideia de implantar, no Rossio de Dentro, um gradeamento sobre o muro de suporte, partiu do último executivo municipal monárquico que serviu o concelho de Nisa, tendo à frente o dr. Mário de Miranda Monteiro, a quem se deve, entre outras obras, o aformoseamento do Rossio (actual zona da Alameda) com a plantação de plátanos.

Lançado o concurso para a feitura e colocação do gradeamento, ainda durante a Monarquia, foi já no período da República que a obra teve lugar e foi concluída, no início de 1911.
Há 93 anos, que o gradeamento do Rossio de Dentro, primeiro, e do Jardim Público, depois, a partir de 1932, se encontrava implantado no espaço nobre da vila.
Agora (2005), tal como no poema, "jaze morto e apodrece". Um golpe profundo, vil, foi desferido na memória e no sentimento de muitos nisenses, ficando a manchar - tal como, aliás, outras "soluções" arquitectónicas e urbanísticas com que, ultimamente, temos sido "presenteados" -, uma obra há muito desejada, mas feita sem a participação, nalguns casos, à revelia, dos seus principais destinatários: a população de Nisa.
O derrube "filipino"
Por coincidência - ou talvez não - o último troço que restava do gradeamento, foi arrancado no passado dia 1º de Dezembro, como a querer assinalar o fim do domínio filipino, em 1640. Só que esta obra - a implantação do artístico gradeamento - não foi feita por "espanhóis", mas sim projectada e realizada por nisenses.
Não a deixaram completar 100 anos, como aconteceu com o Coreto, que vai manter-se no local e fica a assinalar uma época, a nível da arquitectura e da promoção da cultura, através da música.
Que viva a música. Que estralem os foguetes e morram os "velhos do Restelo". Sobre os escombros das grades e da memória, surgirá a modernidade, voarão em vertiginosa velocidade os "skates" e outras enormidades importadas dos States.
O espaço vivido terá mesmo vida. Não será um espaço de todos? Que importa? Importante é requalificar, erguer de novo, destruir pela raíz, não deixar qualquer marca do regime anterior. Daqui a uns meses, quando a obra estiver pronta, "linda", inaugurada, na véspera da disputa dos votos, quem se vai lembrar de umas grades "monárquicas" e "republicanas" de 1911?
DOCUMENTOS
Concurso para fornecimento e collocação de uma grade e oito candieiros, tudo de ferro.
Aos quatro dias do mez de Setembro de 1910, Jayme Marçal Pimentel Fragoso, vereador servindo de presidente da mesma Câmara e tendo dado onze horas da manhã. Foram apresentadas cinco propostas.
Edital: Vedação, sobre o muro de suporte existente no Rocio de Dentro, desta villa.
A grade deve ter o comprimento de 118 metros, sendo uma pequena parte em curva, onde o muro faz volta entre duas ruas que se cruzam em angulo recto.
A grade terá os supportes necessários para sua conveniente fixação; 3ª Os candieiros serão de collunas, decorativos, e serão colocados 2 nas extremidades da grade, 2 nos lados da escada de cantaria, que fica aproximadamente a meio da grade e os restantes, intermédios, servindo todos de supporte e apoio à grade, dispensando, portanto, em taes pontos de supporte de fixação.
Verba orçamental 350$000 reis
Nisa,10/8/1910 - O Presidente da Câmara: Mário Monteiro
Foram apresentadas várias propostas: Abel M. de Carvalho & Irmão, do Crato; Lino Martins Cardoso, da Figueira da Foz; Empreza Industrial Portuguesa, de Lisboa; Joaquim Porto Basso, de Niza; José Maria Rafael Malhado, de Niza, 348$000 reis.
Auto de adjudicação, do fornecimento e collocação de uma grade e oito candieiros, tudo de ferro, no Rocio de Dentro, d´esta villa de Niza, feita a José Maria Raphael Malhado pela quantia de 348$000 reis.
Aos tres dias do mez de Outubro do anno de mil novecentos e dez, n´esta villa de Niza, paços do Concelho e secretaria da Camara Municipal, compareceu o Senhor Doutor Mario Augusto de Miranda Monteiro, presidente da mesma Camara, comigo secretario d´esta, e pelo mesmo senhor presidente foi declarado, em virtude da deliberação hoje tomada pela referida Camara, que adjudica, para todos os effeitos legaes, a José Maria Raphael Malhado, casado, ferreiro, residente n´esta villa e n´este acto presente, o fornecimento e colocação de uma grade e oito candieiros de illuminação, tudo de ferro, com as condições do respectivo concurso.
Prazo de execução, fornecimento e colocação: até 31 de Dezembro, podendo, todavia prorrogar-se o dito prazo se isso for necessário, ao que tudo se obrigou o senhor José M R. Malhado.
Mário Mendes in "Jornal de Nisa" 

MEMÓRIA: A Procissão dos Passos em 2008

Grande manifestação de religiosidade
A população de Nisa saiu à rua na tarde do domingo (dia 2) para acompanhar o Senhor dos Passos naquela que é, nesta vila e desde há séculos, uma das mais impressionantes manifestações de fé: a Procissão dos Passos.
Num dia de sol, as flores e as cores de cada Passo sobressaíram na sua luminosa simplicidade. De simplicidade e de apelo à reflexão, à compaixão e amor ao próximo falaram as mensagens em cada paragem ou estância.

Foi assim desde o início da procissão, na Igreja Matriz, com muito povo a acompanhá-la, e a banda de música da Sociedade Musical Nisense, a fazer-se ouvir nas suas marchas fúnebres condizentes com a solenidade do evento.
O cortejo religioso desceu a rua Direita, a antiga rua da Cadeia e voltou pela rua Dr. Graça à porta de entrada da antiga vila. Paro por aqui. Vou viajar no tempo e dar a palavra ao professor José Francisco Figueiredo.
Vamos supor que ele assistiu, no passado domingo, à Procissão dos Passos na vila onde ambos nascemos...
“Muito antes da hora marcada para a Procissão começa a fluir ao Calvário o pulcro (lindo, belo) e numeroso bando de anjos e, regorgita de irrequietos querubins, ansiosos por que o organizador do préstito lhes entregue os diferentes instrumentos e símbolos da Paixão de Cristo, que, em salvas de prata ou bandejas, devem conduzir.

Vai à frente o guião, empunhado por moço de forte pulso e, logo a seguir, as sete insígnias, intervaladas por filas de anjinhos, o último dos quais – o anjo da cruz - tem de ser menina robusta, para não soçobrar ao peso do santo lábaro em todo o longo itinerário. Antigamente, incorporava-se também a Verónica, donzela que concitava a admiração geral pela compostura e grave seriedade que tinha de manter durante o percurso. Hoje as prescrições litúrgicas não permitem tal figuração.
Após as imagens de Nossa Senhora do Pé da Cruz e S. João, segue o palio, sob o qual um sacerdote conduz o santo lenho, e, no couce da procissão, a filarmónica e a grande massa dos fiéis. Assim organizado, entra o préstito na igreja Matriz onde é pregado o sermão do Pretório, depois do qual a procissão sai pela mesma ordem, seguindo então o andor do Senhor dos Passos à frente do de Nossa Senhora e S. João. Em todo o trajecto, até ao regresso ao Calvário, ouvem-se os acordes plangentes de sentidas marchas fúnebres. E os sinos não cessam de dobrar, até que, no púlpito exterior do Calvário, o pregador encerra a solenidade exaltando, em comovente oração, os merecimentos da Paixão do redentor.
A segunda-feira de Passos, noutros tempos, era de folga nas oficinas e trabalhos rurais. Nas escolas dava-se o mesmo porque, de costume, confessavam-se os alunos nesse dia e visitavam depois a Senhora da Graça”.

Era assim a Procissão dos Passos. Que começava, no dia anterior, à noite, quando a imagem do Senhor dos Passos era conduzida, em camarim fechado, para a Igreja Matriz e seguida por milhares de pessoas que com profusão de vela e tochas davam ao préstito um grande cenário feérico e de religiosidade.
Ah! E havia também as amêndoas, o visitar das montras, isto nos anos 60, o papeliço (papeluço) das amêndoas para as namoradas...
Muitos passos se davam em louvor do Senhor dos Passos. Passos para a vida, passos no caminho do futuro.
E, hoje?

Mário Mendes11/3/2008