Cerca
de nove mil mortos, mais de quinze mil e quinhentos ex-combatentes portadores
de deficiência, e mais de 140 mil sofrendo distúrbios pós-guerra, afectados com
deficiências motoras, sensoriais, orgânicas e mentais, homens marcados física e
psicologicamente para o resto das suas vidas, arrastando nesses processos pós
traumáticos as próprias famílias e os amigos.
A
história de 13 anos de guerra colonial, iniciada em Angola há 50 anos
(Fevereiro de 1961) está por fazer.
Em
“Gente da Minha Terra” publicamos, hoje, o relato de um ex-combatente, herói
anónimo entre tantos outros da guerra do Ultramar.
Joaquim
Maria Correia Mourato, 66 anos, nasceu e reside em Nisa e foi um, de entre o
milhão e quatrocentos mil homens que demandaram terras africanas de Angola,
Moçambique e Guiné.
Uma
história, a sua, que é também uma homenagem aos militares que perderam a vida e
às famílias que não esquecem os entes desaparecidos.
Do
campo para a vida militar
“A
minha família era numerosa e eu trabalhava no campo quando fui chamado para o
serviço militar. Apresentei-me em Elvas no Batalhão de Lanceiros, onde fiz a
recruta. Daqui fui para Estremoz para o Regimento de Cavalaria 2 para tirar a
especialidade. Levava comigo, sem o saber, um louvor do comandante de companhia
e fui escolhido para integrar um grupo de operações especiais.
A
preparação foi feita já na Guiné para onde tínhamos embarcado. Estive naquela
antiga província de 1966 a
1968 e fazia parte do Batalhão de Cavalaria 1897.”
Joaquim
Mourato percorreu muitas regiões da Guiné, como Mansabá, Mansoa, Cufar e
outras. Terras de balantas, beafadas, fulas e mandingas, etnias cujos nomes
pouco ou nada dirão aos portugueses. Andou por tabancas (aldeias) comeu bianda
(arroz) pisou a pé muitos quilómetros de capim e de bolanhas, viu camaradas
seus a tombarem e sentiu algumas vezes a morte a rondar-lhe o corpo.
Ia
preparado para a guerra e nenhuma situação o fez vacilar. Destemido, ganhou a
confiança dos seus camaradas de armas e a sua coragem em combate foi
reconhecida pelos mais altos comandos militares.
“ O
meu batalhão era chamado para muitas zonas e operações onde se fazia sentir
mais intensamente a presença do inimigo. Participámos na célebre “Operação
Fabíola” em Abril de 1967, entrámos várias vezes nos Morés, que era considerado
um dos “santuários” do PAIGC. Nunca senti medo e em qualquer situação avançava
sempre. Mas eu gosto pouco de falar desse tempo...”
Corajoso
e humilde, Joaquim Mourato foi louvado pelo Comandante do Comando Territorial
Independente da Guiné e do louvor consta que “em todas as situações de combate
tem demonstrado invulgares qualidades de coragem, espírito de sacrifício,
entusiasmo e sangue frio (...). De registar a sua atitude no decorrer da “Operação
Fabíola”, em que na exploração de um sucesso, tendo avistado a grande distância
alguns terroristas armados, em fuga, instantaneamente se lançou numa corrida
veloz sobre eles através dum capim altíssimo e denso movendo-lhes perseguição
aturada”.
A
distinção não lhe mudou a vida, nem as condições próprias de um soldado raso.
Continuou a viver como os seus companheiros, o dia a dia difícil, de
combatente, numa terra distante, estranha e de clima ingrato.
“
Estávamos em guerra, tínhamos sido mobilizados para combater e o que queríamos
todos era cumprir a comissão e se possível regressarmos sãos e salvos à
Metrópole”.
Nem
todos conseguiram esse desiderato. Milhares, de um lado e do outro, perderam a
vida, os sonhos de constituírem família ou de abraçarem os entes queridos.
Louvores
e exemplo para a unidade
Entretanto,
Joaquim Mourato voltava a ser distinguido, agora por desempenho na operação
“Efusão III”.
“É
daquelas coisas em que nem sequer temos tempo para pensar. Íamos numa picada e
o guia nativo que estava na frente tinha sido ferido com bastante gravidade e
mesmo debaixo de fogo, não pensei duas vezes, a não ser em lhe prestar os
primeiros socorros. Esqueci-me de tudo o resto, mas felizmente o homem acabou
por salvar-se.”
O
facto não passou em claro e a Ordem de Serviço do Batalhão de Cavalaria 1897
regista, em louvor, o sentimento de “gratidão e humanidade excepcionais”,
reafirmando que esta praça é “aprumada, correcta e leal, um exemplo constante
que muito prestigia e honra a unidade a que pertence”.
Em
Março de 1968, por despacho do Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné,
general António de Spínola, Joaquim Maria Correia Mourato é condecorado com a
Cruz de Guerra de 4ª classe, condecoração que só viria a receber alguns anos
depois.
“Regressei
da Guiné e fui trabalhar para França, para a região de Tours. Em 1974, após o
25 de Abril ainda me convidaram, com viagens pagas e tudo para vir receber a Cruz
de Guerra no dia 10 de Junho, mas a cerimónia não se realizou e lá fiquei à
espera.
Voltei
de França em 1989 e retomei a actividade que lá aprendi, pedreiro e estucador. Já
tenho a Cruz de Guerra, os diplomas e os louvores que me passaram, mas a minha vida
continua a ser de trabalho. As condecorações não me melhoraram a vida. A guerra
colonial já lá vai, provocou danos irreparáveis a muitas famílias, muitos
camaradas ficaram feridos e muitos outros nunca mais puderam ver as suas terras
e as suas gentes.
Os
governantes e a gente mais nova parece que esqueceram a guerra do Ultramar, mas
é bom que saibam que durante esse tempo não pudemos escolher o nosso destino e
sonhar com o futuro, sem ter o compromisso da guerra pelo meio.”
A
história de Joaquim Mourato é o pretexto para lembrarmos outros ex-combatentes
nascidos no concelho de Nisa e em todas regiões do país. Muitos, morreram,
defendendo o conceito de “Pátria” vigente. Outros, feridos, nunca mais puderam
retomar os sonhos da juventude. Uns e outros, todos, merecem ser lembrados
pelas entidades municipais e governativas.
Para
que não se passe uma esponja sobre uma guerra que tanto sofrimento e angústia
trouxe a milhares de famílias.
O
10 de Junho – Dia de Portugal
O
dia 10 de Junho, Dia de Portugal, - hoje também de Camões e das Comunidades
Portuguesa – foi, até ao 25 de Abril de 1974, o dia das paradas militares, de
exaltação nacionalista, da apologia guerreira e da atribuição de condecorações,
por feitos em combate ou de bons serviços nos territórios ultramarinos.
Desfilavam
“rapazes”, alguns “atletas ginasticados”, carne para canhão de uma guerra
injusta.
Era
o “cortejo das viúvas” de que fala o Rui Veloso numa das suas canções, mulheres
ainda jovens, na flor da idade, vestidas de luto e que iam ao Terreiro do Paço
para receberem, a título póstumo, as condecorações atribuídas aos maridos,
filhos ou irmãos.
Era
o tempo dos “soldadinhos de chumbo” regressados num caixão de pinho como
cantou, de modo pungente, o Adriano Correia de Oliveira.
Dramas
esquecidos de uma guerra que tantos jovens vitimou e sobre a qual o país não
soube, ainda, lamber as suas feridas.
Mário
Mendes in "Fonte Nova" - 15/2/2011