quinta-feira, 7 de abril de 2016

GENTE DA MINHA TERRA: Joaquim Correia Mourato

 “ É preciso sarar as feridas da guerra do Ultramar”_ Joaquim Mourato, ex-combatente na Guiné
Cerca de nove mil mortos, mais de quinze mil e quinhentos ex-combatentes portadores de deficiência, e mais de 140 mil sofrendo distúrbios pós-guerra, afectados com deficiências motoras, sensoriais, orgânicas e mentais, homens marcados física e psicologicamente para o resto das suas vidas, arrastando nesses processos pós traumáticos as próprias famílias e os amigos.
A história de 13 anos de guerra colonial, iniciada em Angola há 50 anos (Fevereiro de 1961) está por fazer.
Em “Gente da Minha Terra” publicamos, hoje, o relato de um ex-combatente, herói anónimo entre tantos outros da guerra do Ultramar.
Joaquim Maria Correia Mourato, 66 anos, nasceu e reside em Nisa e foi um, de entre o milhão e quatrocentos mil homens que demandaram terras africanas de Angola, Moçambique e Guiné.
Uma história, a sua, que é também uma homenagem aos militares que perderam a vida e às famílias que não esquecem os entes desaparecidos.
Do campo para a vida militar
“A minha família era numerosa e eu trabalhava no campo quando fui chamado para o serviço militar. Apresentei-me em Elvas no Batalhão de Lanceiros, onde fiz a recruta. Daqui fui para Estremoz para o Regimento de Cavalaria 2 para tirar a especialidade. Levava comigo, sem o saber, um louvor do comandante de companhia e fui escolhido para integrar um grupo de operações especiais.
A preparação foi feita já na Guiné para onde tínhamos embarcado. Estive naquela antiga província de 1966 a 1968 e fazia parte do Batalhão de Cavalaria 1897.”
Joaquim Mourato percorreu muitas regiões da Guiné, como Mansabá, Mansoa, Cufar e outras. Terras de balantas, beafadas, fulas e mandingas, etnias cujos nomes pouco ou nada dirão aos portugueses. Andou por tabancas (aldeias) comeu bianda (arroz) pisou a pé muitos quilómetros de capim e de bolanhas, viu camaradas seus a tombarem e sentiu algumas vezes a morte a rondar-lhe o corpo.
Ia preparado para a guerra e nenhuma situação o fez vacilar. Destemido, ganhou a confiança dos seus camaradas de armas e a sua coragem em combate foi reconhecida pelos mais altos comandos militares.
“ O meu batalhão era chamado para muitas zonas e operações onde se fazia sentir mais intensamente a presença do inimigo. Participámos na célebre “Operação Fabíola” em Abril de 1967, entrámos várias vezes nos Morés, que era considerado um dos “santuários” do PAIGC. Nunca senti medo e em qualquer situação avançava sempre. Mas eu gosto pouco de falar desse tempo...”
Corajoso e humilde, Joaquim Mourato foi louvado pelo Comandante do Comando Territorial Independente da Guiné e do louvor consta que “em todas as situações de combate tem demonstrado invulgares qualidades de coragem, espírito de sacrifício, entusiasmo e sangue frio (...). De registar a sua atitude no decorrer da “Operação Fabíola”, em que na exploração de um sucesso, tendo avistado a grande distância alguns terroristas armados, em fuga, instantaneamente se lançou numa corrida veloz sobre eles através dum capim altíssimo e denso movendo-lhes perseguição aturada”.
A distinção não lhe mudou a vida, nem as condições próprias de um soldado raso. Continuou a viver como os seus companheiros, o dia a dia difícil, de combatente, numa terra distante, estranha e de clima ingrato.
“ Estávamos em guerra, tínhamos sido mobilizados para combater e o que queríamos todos era cumprir a comissão e se possível regressarmos sãos e salvos à Metrópole”.
Nem todos conseguiram esse desiderato. Milhares, de um lado e do outro, perderam a vida, os sonhos de constituírem família ou de abraçarem os entes queridos.
Louvores e exemplo para a unidade
Entretanto, Joaquim Mourato voltava a ser distinguido, agora por desempenho na operação “Efusão III”.
“É daquelas coisas em que nem sequer temos tempo para pensar. Íamos numa picada e o guia nativo que estava na frente tinha sido ferido com bastante gravidade e mesmo debaixo de fogo, não pensei duas vezes, a não ser em lhe prestar os primeiros socorros. Esqueci-me de tudo o resto, mas felizmente o homem acabou por salvar-se.”
O facto não passou em claro e a Ordem de Serviço do Batalhão de Cavalaria 1897 regista, em louvor, o sentimento de “gratidão e humanidade excepcionais”, reafirmando que esta praça é “aprumada, correcta e leal, um exemplo constante que muito prestigia e honra a unidade a que pertence”.
Em Março de 1968, por despacho do Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, general António de Spínola, Joaquim Maria Correia Mourato é condecorado com a Cruz de Guerra de 4ª classe, condecoração que só viria a receber alguns anos depois.
“Regressei da Guiné e fui trabalhar para França, para a região de Tours. Em 1974, após o 25 de Abril ainda me convidaram, com viagens pagas e tudo para vir receber a Cruz de Guerra no dia 10 de Junho, mas a cerimónia não se realizou e lá fiquei à espera.
Voltei de França em 1989 e retomei a actividade que lá aprendi, pedreiro e estucador. Já tenho a Cruz de Guerra, os diplomas e os louvores que me passaram, mas a minha vida continua a ser de trabalho. As condecorações não me melhoraram a vida. A guerra colonial já lá vai, provocou danos irreparáveis a muitas famílias, muitos camaradas ficaram feridos e muitos outros nunca mais puderam ver as suas terras e as suas gentes.
Os governantes e a gente mais nova parece que esqueceram a guerra do Ultramar, mas é bom que saibam que durante esse tempo não pudemos escolher o nosso destino e sonhar com o futuro, sem ter o compromisso da guerra pelo meio.”
A história de Joaquim Mourato é o pretexto para lembrarmos outros ex-combatentes nascidos no concelho de Nisa e em todas regiões do país. Muitos, morreram, defendendo o conceito de “Pátria” vigente. Outros, feridos, nunca mais puderam retomar os sonhos da juventude. Uns e outros, todos, merecem ser lembrados pelas entidades municipais e governativas.
Para que não se passe uma esponja sobre uma guerra que tanto sofrimento e angústia trouxe a milhares de famílias.
O 10 de Junho – Dia de Portugal
O dia 10 de Junho, Dia de Portugal, - hoje também de Camões e das Comunidades Portuguesa – foi, até ao 25 de Abril de 1974, o dia das paradas militares, de exaltação nacionalista, da apologia guerreira e da atribuição de condecorações, por feitos em combate ou de bons serviços nos territórios ultramarinos.
Desfilavam “rapazes”, alguns “atletas ginasticados”, carne para canhão de uma guerra injusta.
Era o “cortejo das viúvas” de que fala o Rui Veloso numa das suas canções, mulheres ainda jovens, na flor da idade, vestidas de luto e que iam ao Terreiro do Paço para receberem, a título póstumo, as condecorações atribuídas aos maridos, filhos ou irmãos.
Era o tempo dos “soldadinhos de chumbo” regressados num caixão de pinho como cantou, de modo pungente, o Adriano Correia de Oliveira.
Dramas esquecidos de uma guerra que tantos jovens vitimou e sobre a qual o país não soube, ainda, lamber as suas feridas.
Mário Mendes in "Fonte Nova" - 15/2/2011