quarta-feira, 6 de abril de 2016

No Rasto da Memória: A Fortaleza de Nisa

É sabido que uma luta fratricida converteu em montões de escombros a minúscula povoação que, com o nome de Nisa, se aninhava na encosta e sopé do monte de Nossa Senhora da Graça. Mas a lealdade dos nisenses é que nem a ferro e fogo foi abalada. Fiéis ao seu rei, os nossos antepassados perderam tudo menos a honra. E essa mesma inteireza de carácter, esse mesmo sentir de patriotas os animou quando receberam do Rei-Lavrador a justa recompensa do seu nobilíssimo rasgo de abnegação e fidelidade.
Para a nova vila trouxeram todos os seus pergaminhos de honradez, e aqui, no conforto das novas moradias, continuaram a ser dignos da memória dos que para sempre ficaram sepultados nas ruínas dos seus lares arrasados e incendiados.
Em descuidosa tranquilidade, fruíam a suave alegria de agenciarem sua vida de agricultores em campos de mais úbere fertilidade e não mais os preocupou o terror dos inimigos externos, confiados, como estavam na inexpugnabilidade dos muros de defesa e na protecção dos freires de Cristo alojados no antigo castelo de Ferron.
A solidez das fortificações parecia desafiar a investida dos séculos. Infelizmente não foi assim. O tempo e a incúria de sucessivas gerações foram deixando desmoronar, a pouco e pouco, o que D. Dinis fizera erguer com a quantiosa soma de seis mil réis, para continuarem as obras sem cessar...
E, no entanto, a fortaleza de Nisa, pelo que dela podemos ainda hoje ajuizar consultando o admirável trabalho de Duarte de Armas, devia ter sido das de maior valor estratégico e, sem dúvida, uma das que, na fronteira, mais concitariam a admiração e enlêvo de quantos nela pusessem os olhos de interessada e curiosa observação.
Já o perímetro quadrangular das muralhas não é muito vulgar; e essa disposição, com as altaneiras torres, devia contribuir bastante para dar maior relevo estético à obra monumental erguida por D. Dinis como galardão aos leais nisorros, homens duma só fé que deixaram arrasar os próprios lares só para não atraiçoarem o seu rei.
Do antigo castelo de Ferron ou dos Templários, junto do qual se levantou a vila dionisina, nada resta hoje. Sabe-se contudo, por um manuscrito da Torre do Tombo sobre as Comendas de Cristo, citado pelo Dr. Laranjo Coelho no seu estudo sobre as Ordens de Cavalaria do Alto Alentejo, que tinha interiormente magníficas instalações:  ampla sala térrea e câmaras sobradadas  destinadas aos aposentos do alcaide e comendador, muitos quartos e celas destinados aos cavaleiros da Ordem donatária, varandas, alpendres, diversos compartimentos térreos, cozinha, três estrebarias, amplo terreiro e pátio com um poço profundo.
Este poço foi localizado e desobstruído, quando o sr. dr. José Miguéns mandou construir a sua elegante vivenda no local do antigo castelo.
Nos últimos anos do século XIX estavam ainda de pé a maior parte das paredes, algumas delas assentes sobre resistentes e espaçosos arcos de granito; e da torre a nordeste ainda logrei ver alguns metros das suas quatro faces.
As outras, uma das quais, a de menagem, tinha dezassete varas de altura e onde havia a célebre porta da traição, foram totalmente arrasadas, quando em 1704, pela Guerra da Sucessão, os espanhóis no caminho para Portalegre, aqui acamparam e e permaneceram alguns dias.
Foi, como se disse, sob a égide do castelo e Preceptoria dos Templários que D. Dinis fez erguer a nova vila, cercando-a de fortes muralhas de quarenta palmos de altura e oito de espessura e com todos os elementos de defesa característicos das fortificações da Idade Média.
Além das quatro torres do castelo, levantavam-se, no recinto amuralhado, mais sete, umas seccionando em quadrelas; outras atalaiando as portas, que eram três: a da Vila, a de Montalvão e a de João de Évora. Havia ainda três postigos: o de S. Pedro, o do Canto do Adrião e o da Cadeia.
De todo o conjunto defensivo de Nisa-a-Nova, restam, além dos lanços de muralha, aproveitados para varandas de vários prédios, apenas as torres da Porta da Vila, a da Porta de Montalvão e os restos de outra no Canto João de Évora.
Para que este pouco chegado até nós, não desapareça de todo sob o camartelo do progresso é que o Estado fez dele seu património, elevando à categoria de monumentos nacionais aquelas duas elegantes portas e torres adjacentes.
Cessaram assim os vandalismos. Não mais foi permitido arrancar uma pedra nem praticar outros estúpidos atentados contra a página mais expressiva dos anais da nossa terra.
Mas, além de zelar pela integridade do existente, propôs-se a Direcção dos Monumentos Nacionais restituir o que resta da vetusta fortaleza ao seu antigo aspecto.
Para esse efeito, operários especializados reintegraram já, na sua primitiva traça, as torres da Porta da Vila, desafrontando-as de quanto as desfeava e tornando-as assim num monumento interessantíssimo, como em poucas terras haverá.
Fizeram-se outras reparações e foi interrompido há dias, não se sabe por quê, o trabalho de restauro da torre da Porta de Montalvão.
Ver-se-ia também com muito aprazimento a reconstituição da de João de Évora e de uma outra, no ângulo sudeste da muralha, na qual há uma pequena porta em ogiva; a maioria da população desconhece e só há pouco tempo me foi dado observar.
Para concluir, já quão tenho de lamentar a perda irreparável do castelo de Ferron, em que o fundador de Nisa porventura se acolheria nas suas bélicas digressões pelo Alentejo e onde talvez ficasse um pouco do celestial perfume da caridade da Rainha Santa; já que o conjunto das fortificações da minha terra, por vandalismos irreparáveis, jamais poderá ser restituído à sua pristina beleza e estrutura, que ao menos as torres e adarves sejam coroados de ameias onde for possível dar-lhes esse característico remate e que os técnicos procurem salvar quanto possam dos restos da nossa linda e inexpugnável fortaleza medieval, que, em plena integridade, não teria rival entre todas as da fronteira e seria émula condigna do relicário monumental de Óbidos.
J. Figueiredo in “Correio de Nisa” nº 19 – 2/12/1945