É
sabido que uma luta fratricida converteu em montões de escombros a minúscula
povoação que, com o nome de Nisa, se aninhava na encosta e sopé do monte de
Nossa Senhora da Graça. Mas a lealdade dos nisenses é que nem a ferro e fogo
foi abalada. Fiéis ao seu rei, os nossos antepassados perderam tudo menos a
honra. E essa mesma inteireza de carácter, esse mesmo sentir de patriotas os
animou quando receberam do Rei-Lavrador a justa recompensa do seu nobilíssimo
rasgo de abnegação e fidelidade.
Para
a nova vila trouxeram todos os seus pergaminhos de honradez, e aqui, no
conforto das novas moradias, continuaram a ser dignos da memória dos que para
sempre ficaram sepultados nas ruínas dos seus lares arrasados e incendiados.
Em
descuidosa tranquilidade, fruíam a suave alegria de agenciarem sua vida de
agricultores em campos de mais úbere fertilidade e não mais os preocupou o
terror dos inimigos externos, confiados, como estavam na inexpugnabilidade dos
muros de defesa e na protecção dos freires de Cristo alojados no antigo castelo
de Ferron.
A
solidez das fortificações parecia desafiar a investida dos séculos.
Infelizmente não foi assim. O tempo e a incúria de sucessivas gerações foram
deixando desmoronar, a pouco e pouco, o que D. Dinis fizera erguer com a
quantiosa soma de seis mil réis, para continuarem as obras sem cessar...
E,
no entanto, a fortaleza de Nisa, pelo que dela podemos ainda hoje ajuizar
consultando o admirável trabalho de Duarte de Armas, devia ter sido das de
maior valor estratégico e, sem dúvida, uma das que, na fronteira, mais
concitariam a admiração e enlêvo de quantos nela pusessem os olhos de
interessada e curiosa observação.
Já
o perímetro quadrangular das muralhas não é muito vulgar; e essa disposição,
com as altaneiras torres, devia contribuir bastante para dar maior relevo
estético à obra monumental erguida por D. Dinis como galardão aos leais
nisorros, homens duma só fé que deixaram arrasar os próprios lares só para não
atraiçoarem o seu rei.
Do
antigo castelo de Ferron ou dos Templários, junto do qual se levantou a vila
dionisina, nada resta hoje. Sabe-se contudo, por um manuscrito da Torre do
Tombo sobre as Comendas de Cristo, citado pelo Dr. Laranjo Coelho no seu estudo
sobre as Ordens de Cavalaria do Alto Alentejo, que tinha interiormente
magníficas instalações: ampla sala
térrea e câmaras sobradadas destinadas
aos aposentos do alcaide e comendador, muitos quartos e celas destinados aos
cavaleiros da Ordem donatária, varandas, alpendres, diversos compartimentos
térreos, cozinha, três estrebarias, amplo terreiro e pátio com um poço
profundo.
Este
poço foi localizado e desobstruído, quando o sr. dr. José Miguéns mandou
construir a sua elegante vivenda no local do antigo castelo.
Nos
últimos anos do século XIX estavam ainda de pé a maior parte das paredes,
algumas delas assentes sobre resistentes e espaçosos arcos de granito; e da
torre a nordeste ainda logrei ver alguns metros das suas quatro faces.
As
outras, uma das quais, a de menagem, tinha dezassete varas de altura e onde
havia a célebre porta da traição, foram totalmente arrasadas, quando em 1704,
pela Guerra da Sucessão, os espanhóis no caminho para Portalegre, aqui
acamparam e e permaneceram alguns dias.
Foi,
como se disse, sob a égide do castelo e Preceptoria dos Templários que D. Dinis
fez erguer a nova vila, cercando-a de fortes muralhas de quarenta palmos de
altura e oito de espessura e com todos os elementos de defesa característicos
das fortificações da Idade Média.
Além
das quatro torres do castelo, levantavam-se, no recinto amuralhado, mais sete,
umas seccionando em quadrelas; outras atalaiando as portas, que eram três: a da
Vila, a de Montalvão e a de João de Évora. Havia ainda três postigos: o de S.
Pedro, o do Canto do Adrião e o da Cadeia.
De
todo o conjunto defensivo de Nisa-a-Nova, restam, além dos lanços de muralha,
aproveitados para varandas de vários prédios, apenas as torres da Porta da
Vila, a da Porta de Montalvão e os restos de outra no Canto João de Évora.
Para
que este pouco chegado até nós, não desapareça de todo sob o camartelo do
progresso é que o Estado fez dele seu património, elevando à categoria de
monumentos nacionais aquelas duas elegantes portas e torres adjacentes.
Cessaram
assim os vandalismos. Não mais foi permitido arrancar uma pedra nem praticar
outros estúpidos atentados contra a página mais expressiva dos anais da nossa
terra.
Mas,
além de zelar pela integridade do existente, propôs-se a Direcção dos
Monumentos Nacionais restituir o que resta da vetusta fortaleza ao seu antigo
aspecto.
Para
esse efeito, operários especializados reintegraram já, na sua primitiva traça,
as torres da Porta da Vila, desafrontando-as de quanto as desfeava e
tornando-as assim num monumento interessantíssimo, como em poucas terras
haverá.
Fizeram-se
outras reparações e foi interrompido há dias, não se sabe por quê, o trabalho
de restauro da torre da Porta de Montalvão.
Ver-se-ia
também com muito aprazimento a reconstituição da de João de Évora e de uma
outra, no ângulo sudeste da muralha, na qual há uma pequena porta em ogiva; a
maioria da população desconhece e só há pouco tempo me foi dado observar.
Para
concluir, já quão tenho de lamentar a perda irreparável do castelo de Ferron,
em que o fundador de Nisa porventura se acolheria nas suas bélicas digressões
pelo Alentejo e onde talvez ficasse um pouco do celestial perfume da caridade
da Rainha Santa; já que o conjunto das fortificações da minha terra, por
vandalismos irreparáveis, jamais poderá ser restituído à sua pristina beleza e
estrutura, que ao menos as torres e adarves sejam coroados de ameias onde for
possível dar-lhes esse característico remate e que os técnicos procurem salvar
quanto possam dos restos da nossa linda e inexpugnável fortaleza medieval, que,
em plena integridade, não teria rival entre todas as da fronteira e seria émula
condigna do relicário monumental de Óbidos.
J.
Figueiredo in “Correio de Nisa” nº 19 – 2/12/1945