A Rua do Convento foi o nosso primeiro mundo, um palco de
aprendizagens, paixões, de todas as descobertas. Foi numa casa em frente à Casa
do Povo que os meus pais se fixaram no ano de 1967. Numa época marcada por
grandes dificuldades económicas, pela guerra colonial, por uma esperança de
liberdade eternamente adiada. A rua funcionava como uma comunidade viva,
aberta, dinâmica e acolhedora, fomentava-se a cooperação e a inter – ajuda
entre vizinhos.
Na Casa do Povo o movimento era permanente, um entra e sai
constante de utentes, médicos e funcionários. A figura mais marcante era o Sr.
Aníbal Reizinho com as suas mangas pretas protegendo a camisa, acessório
indispensável do funcionário público de então. A sua estatura impunha respeito,
mas era sobretudo um homem muito afável, um amigo. A meio da rua, um lagar de
azeite causava a natural azáfama sazonal, enquanto a pequenada sobre os carris
de ferro brincava aos comboios.
Próximo da Fonte da Pipa, junto de um imenso campo de areia,
a oficina de automóveis do Sr. Luís. Nas montanhas de areia, faziam-se buracos,
corridas, o que originava muitas cabeças partidas e idas à Casa do Povo para os
respectivos curativos. Em frente da oficina, a taberna do Sr. João Serra, peixe
frito, ovos cozidos, copos de vinho, tristezas e alegrias. Por ali paravam
muitos camionistas para a tão merecida refeição.
De volta à Rua do Convento, a nossa casa era a primeira, o
número quatro, seguiam-se as casas do Sr. José Carita, das famílias "São
Diogo", "Botas", Poeiras e Caldeira Valente. Do lado esquerdo da
rua, a Tá Conceição, a família Bagulho, a Sra. Ana Maria e o Ti
"Rei", entre outros. O Bairro da Cevadeira ainda não existia, o
acesso à Escola Primária era feito pela Rua do Convento.
A grande Tapada de oliveiras, que viria a ser o Bairro da Cevadeira era um autêntico campo de batalha onde os rapazes da Vila e os da Fonte da Pipa se degladiavam. No fim do dia de escola um qualquer líder mandava formar as tropas e ao grito de "calhoada" atiravam-se pedras, era preciso expulsar os da vila de um território que era nosso, era vê-los a fugir por entre as vacas do Sr. Moura Gaspar. Uma brincadeira que hoje nos parece tão pouco civilizada mas que na altura no enchia de contentamento.
A grande Tapada de oliveiras, que viria a ser o Bairro da Cevadeira era um autêntico campo de batalha onde os rapazes da Vila e os da Fonte da Pipa se degladiavam. No fim do dia de escola um qualquer líder mandava formar as tropas e ao grito de "calhoada" atiravam-se pedras, era preciso expulsar os da vila de um território que era nosso, era vê-los a fugir por entre as vacas do Sr. Moura Gaspar. Uma brincadeira que hoje nos parece tão pouco civilizada mas que na altura no enchia de contentamento.
Na estrada para o Monte Claro, a mercearia da Tá Conceição,
cada gelado de groselha custava um escudo; mais para cima, o Ti Júlio
canalizador está a chegar da horta, ar pachorrento, passo firme, com o seu fato
de macaco azul-escuro, às vezes parecia-nos que o pequeno burro tinha
dificuldade em acompanhar a sua vigorosa passada.
Nesses anos a casa do vizinho era uma extensão da nossa
própria casa, com o Ti João Valente aprendemos a fazer contas, todos eram especiais.
A noite caía sobre o Convento, as televisões são em número muito reduzido, já
se ouve a musica que antecipa as aventuras de "Sandokan", corro a
bater às portas, em pouco tempo a nossa sala fica apinhada de vizinhos.
E o Convento que deu o nome à rua? Onde estão os seus
vestígios?
Diz-nos Motta e Moura na Memória Histórica de Nisa,
"…que pensaremos ao avistar o sítio, onde estivera outr’ora um convento
com o seu claustro, e cêrca, uma egreja com seu campanário e sinos… e no
entanto tudo isto desappareceu sem nos indicar ao menos uma pedra sobre outra,
que nos indicasse, onde fora a egreja, onde o convento, onde a cerca e o
dormitório! é um campo raso e plano retalhado anualmente pelo arado…assim
acontece a mui pequena distância da villa, no sitio chamado vulgarmente o
Convento, onde out’rora esteve fundado um pequeno hospício de Frades Agostinhos
Descalços, e hoje não há o mais remoto indicio de humana habitação."
Não sabemos o local onde se edificou o Convento. Seria na
actual Escola Primária, na própria rua, ou no alto do lagar? Procuro a
resposta. Procuro no meu arquivo, mas do escuro não se faz luz. Vou mais fundo,
ao arquivo da minha memória, não encontro a porta de entrada. Outubro de 1974,
primeiro dia de escola, no pátio as crianças cantam em coro a "Loja do
Mestre André", estamos todos contentes. São professores no Convento, o
professor Pires Marques, Joaquim Castanho e Lúcia Bicho, dos outros não me
recordo.
Mudamos de residência em 1976. A porta fechou-se,
não voltámos mais à nossa primeira casa. Tantas vezes tivemos vontade de voltar
a entrar, percorrer novamente o quarto onde ouvimos as primeiras histórias para
adormecer.
Onde está o Convento? Não existe um vestígio, uma pedra da
antiga casa dos Frades Agostinhos Descalços! Não importa onde era. O Convento
era a generosidade da vizinha Isabel, são as portas abertas, a escola, a Casa
do Povo e as brincadeiras. O Convento somos todos, todos pertencemos à mesma
irmandade. À semelhança dos antigos frades, também nós vimos o mesmo céu,
pisamos a mesma terra, bebemos a mesma água. Recuo mais para trás, continuo a
minha pesquisa, sigo as pegadas dos antigos monges, procuro a porta de entrada,
o Convento está por ali.
Sabemos que os monges deixaram Nisa com destino a
Portalegre, seguimos o seu caminho. Fomos a Portalegre ao Convento de Santo
Agostinho, hoje quartel da Guarda Nacional Republicana. Vamos à procura de
algo, de um símbolo, um rasto, um vestígio, uma luz no fundo do túnel. O
Convento de Portalegre foi edificado em 1680, uma data que coincide com a data
que nos é indicada por Motta e Moura para o abandono do Mosteiro de Nisa. O
agente de serviço disponibilizou-se para uma rápida visita, fomos surpreendidos
pelo cimento e outras alterações na estrutura. Ninguém sabe a localização da
antiga capela, as salas estão agora ocupadas por pneus e automóveis. No
corredor encontrámos uma porta adornada por grandes blocos graníticos, do lado
de lá uma enorme sala rectangular que só poderá ser o espaço da antiga capela.
Mais uma vez o cimento tomou conta do espaço, do piso e das paredes, através
das enormes janelas, os raios solares não pedem licença para entrar, iluminam a
sala. Por breves momentos consigo ouvir os cânticos dos monges, por ali
passaram os antigos Agostinhos Descalços que um dia deixaram Nisa. Nos altos
tectos da sala, muito alto, lá no cimo, bem alto, onde o cimento não chegou,
vislumbramos uma pintura, já muito gasta, conseguimos ver as cinco quinas
portuguesas e a águia de asas abertas, elemento sempre presente no brasão dos
frades desta ordem. Não conseguimos visitar o primeiro piso do edifício, tal
facto carecia de uma autorização formal da Guarda Nacional.
Estamos de regresso a Nisa, procuramos um vestígio do
Convento. A resposta poderá estar na magnífica estrutura da Fonte da Pipa, qual
a sua origem?
Sobre a fonte, escreveu Motta e Moura:
"fica mui próxima da villa para parte do occidente, e
cuja agua quasi que iguala a da Cruz em bondade e sabor, infelizmente é de tão
mingoado nascente, que secca logo nos princípios de Julho, e não torna a correr
senão nos fins do Outomno; foi construída pelo alvaneo João Alvares no anno de
1706…".
Sobre o abandono da casa dos monges de Nisa, diz-nos o mesmo
autor:
"além de pequena e pobre sempre teve poucos moradores;
e foi por isto mesmo, que acabou e foi supprimida no anno de 1680, mandando-se
recolher o seu espólio, e gente à de Portalegre, que então se havia concluído
com muito esplendor e grandeza."
Se as duas datas apresentadas por Motta e Moura estiverem
correctas temos um intervalo de apenas 26 anos entre o abandono do convento e a
construção da fonte. A Fonte da Pipa é um dos monumentos mais bonitos de Nisa.
Que segredos nos revelam as suas colunas e os seus capitéis? O que nos dizem os
símbolos da base da cruz? Poderão estas pedras ter pertencido a um pequeno
mosteiro, um convento muito antigo, tão antigo que segundo o cronista desta
ordem religiosa terá sido edificado nos primórdios da nacionalidade.
A Fonte da Pipa, que se situa a curta distância da Rua do
Convento, é a nossa última pista; é ali que terminam as pegadas, na fonte que
mais parece uma ermida. Feita à imagem de um pequeno templo, tem tudo no lugar
certo, colunas, tecto ovalizado e a cruz ao cimo.
Na cidade de Portalegre, no Convento de Santo Agostinho,
numa sala que fora capela e onde outrora se falou com Deus, em lugar cimeiro e
como se de uma estrela se tratasse, fomos encontrar um sinal. Nota-se muito
bem, parece uma sombra com rasgos de colorido, o nosso olhar percorreu cada
milímetro da pintura. Perante o complexo de riscos adulterados, pareceu-nos ver
uma fonte ou seria uma ilusão!
Na nossa opinião a Fonte da Pipa poderá ser uma réplica, um
símbolo, uma homenagem, uma memória do próprio convento.
A Fonte e a água. A água da vida. A água que corre da pipa.
A Fonte que fora o meu primeiro mundo, o palco das primeiras brincadeiras, era
a peça que me faltava. Do escuro já se fez luz. Fecho a porta.
* Luís Mário Correia Bento