terça-feira, 12 de abril de 2016

Arez reaviva tradição da Quaresma

Os cânticos na noite para Encomendação das Almas
Em Arez, as noites de sextas-feiras da Quaresma ganharam, desde há 11 anos, um outro encanto e mistério. Um grupo já identificado como o dos “Encomendadores” percorre as principais ruas da antiga vila e em locais estabelecidos, na encruzilhada de caminhos, dispõe-se em círculo e entoa os cânticos da “Encomendação das Almas”.
É uma tradição muito antiga, que remonta à Idade Média e praticada em Arez até início dos anos sessenta do século passado. Depois, por falta de “encomendadores” ou de vontade, o ritual perdeu-se e foi sendo esquecido na poeira do tempo. Até que...
Em Março de 2002, - relembra Rosa Metelo, professora e presidente da associação ACESA – “no âmbito do projecto local “Seres e Saberes” da antiga Escola Básica de Arez, a que pertencia como professora, os alunos resolveram entrevistar e filmar o senhor José que, entre várias histórias e costumes antigos, lembrou a tradição que era feita em Arez, nas sextas-feiras pela Quaresma e que se chamava “Encomendar as Almas”. Professores, alunos e senhoras de várias idades ensaiaram, então, a letra e os cânticos. Às 11 horas da noite saímos da escola e em silêncio caminhamos até às encruzilhadas onde antigamente se encomendavam as almas. Terminámos o percurso à meia-noite, depois de termos cantado a “Encomendação” em sete locais da aldeia. A tradição era reposta e assim tem sido desde essa altura”.
Na noite da passada sexta-feira, estivemos na sede da ACESA – Associação da Cultura e Saberes de Arez – e ficámos a conhecer o grupo de “Encomendadores”: Idalina Vaz, 72 anos; João Lourenço, 68 anos e a esposa Maria de Fátima Lourenço, de 66; Rosa Metelo, 57 anos, a mentora do projecto e o filho Ricardo Metelo, 18 anos.
O grupo chegou a ter, no início, 20 elementos, constituído na sua maioria por mulheres. Hoje, devido a doença, não pode contar com Antónia Vaz, 74 anos, e uma das vozes mais sonantes. Não se trata de um grupo completo, fechado. O apelo da ACESA dirigido aos habitantes de Arez é que mais homens e mulheres, idosos ou jovens, participem, mantendo e divulgando esta tradição.
 Saímos para a rua. A aragem da noite é fria, mas parece ter passado a ameaça de chuva. A primeira paragem é junto à Igreja Matriz. Dispostos em círculo, os encomendadores puxam das vozes e, em sintonia, lançam em cântico, os apelos à quietude das almas.
São sons pungentes, um cantochão vibrante que quebra o silêncio quase sepulcral da aldeia. Não se vê vivalma. Pressente-se, porém, através da luz vinda de algumas frestas de portas e janelas que os cânticos não passam indiferentes. Diz a tradição e, talvez, a superstição das gentes, que “enquanto as almas são encomendadas não se deve abrir portas ou janelas, para impedir a entrada de alguma alma desencaminhada”.
Eu vos peço aos meus irmãos
Que rezeis um padre-nosso
Àquelas benditas almas
Que andam sobre as águas do mar
Que Deus chegue a ponto d`as salvar
Seja pelo amor de Deus
Pelo amor de Deus seja
O cântico é repetido mais duas vezes, com ligeira alteração no começo do primeiro verso “Mais vos peço...” e na intenção “Que rezeis uma Ave-Maria” e “Que rezeis uma Salve-Rainha”. O ritual termina, em cada paragem, com os elementos do grupo a benzerem-se, fazendo o sinal da cruz.
Chegámos ao alto do Rossio, junto ao cruzeiro. O grupo procura o melhor sítio para difundir a mensagem, mas o frio e o vento são cortantes, gélidos. Agasalham-se como podem, tentando proteger as vozes e as gargantas. Não é um exercício fácil, esta prática que vem desde a longínqua noite dos tempos e que em algumas aldeias do norte é, de quando em vez, “condimentada” com um copinho para retemperar as forças. Aqui, domina a vontade, a religiosidade, inquebrantável destes homens e mulheres.
Entoam, a uma só voz, os apelos em forma de música, para serenarem as almas.
Repetem, ao longo da noite, fria e silenciosa, em mais cinco locais da aldeia, as mesmas palavras e preces, irmanados num desejo comum que junta a fé, a cultura e a tradição.
Na próxima sexta-feira, e até à sexta-feira santa, sairão, novamente, para a rua e irão “Recomendar as Almas”, porque “há almas que precisam de luz” e o objectivo da associação é manter ACESA na comunidade, a chama da esperança e do respeito pelas tradições.
O Encomendar das Almas no concelho de Nisa
A tradição “Encomendar as Almas” remonta à Idade Média e ainda hoje é praticada em muitos locais do país, principalmente no norte e na Beira Baixa e até no Brasil, principalmente nas regiões onde mais se fez sentir a presença colonizadora portuguesa, nomeadamente, no Estado de Minas Gerais, de onde nos chegam vários relatos sobre esta prática ancestral.
No concelho de Nisa caiu, há muito, em desuso, havendo notícia de que era um rito corrente em Nisa, Montalvão e Amieira do Tejo.
Em Nisa e de acordo com José Francisco Figueiredo (1) era uso pela Quaresma “especialmente na Semana Santa, encomendar as almas. Um terceto ou quarteto de executantes da filarmónica, acompanhados de várias cantoras, percorria as ruas da localidade a altas horas da noite, entoando, em funéreo acento, algumas quadras alusivas às penas sofridas pelas almas do Purgatório. Este costume acabou por completo, assim como o de rezar o terço com acompanhamento de vários cânticos, que diariamente congregava, em casas particulares, dezenas de mulheres da vizinhança.”
Não menos importante e pelo seu valor religioso e etnográfico, deixamos para registo o ritual da “Encomendação das Almas, em Amieira do Tejo, tal qual nos é descrito no livro “Amieira do antigo priorado do Crato” (2)
A Encomendação das Almas – Amieira do Tejo
Durante a Quaresma, geralmente nas terças ou sextas-feiras de cada semana, grupos de rapazes e raparigas, chefiados por algumas pessoas de mais idade, que antes tinham sido os seus ensaiadores, percorriam, por volta da meia-noite, todos, ou pelo menos, os principais Passos, como o da porta da Igreja, o da Praça, e o do Calvário, onde, numa toada plangente e sentimental, cantavam em coro, algumas vezes acompanhados por um pífaro pastoril ou harmónio, as quadras que se seguem, assim falando àquela hora e por aquela forma aos sentimentos de piedade das pessoas que, nas suas camas, as escutavam, rezando, quando eles o pediam, um Padre-Nosso e Ave-Maria:
Cristandade tão unida:
Ouvi gritos e ais
Dos que estão na outra vida,
As almas dos nossos pais

Toda a noite e todo o dia,
Sempre estão numa agonia,
Pedindo que lhes rezem
Padre-Nosso e Ave-Maria.
E após uma pausa para se rezarem o P.N e A.M., prosseguiam:
Gritam contra os seus herdeiros
A quem os seus bens deixaram,
Gritam contra seus parentes,
Que neste mundo ficaram,
E contra o seu amigo,
Que nem sequer o alivia
Com um Padre-Nosso e Ave-Maria.
Faziam, em seguida, momentos de silêncio, para dar tempo a que todos, encomendadores e ouvintes, rezassem cinco P. N. ao Santíssimo Sacramento e três Salve-Rainhas a Nossa Senhora, assim seguindo de um para o outro Passo.
NOTAS
(1) – José Francisco Figueiredo – “Monografia da Notável Vila de Nisa”
(2) Tude de Sousa e Francisco Vieira Rasquilho – “Amieira do Antigo Priorado do Crato”
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - Março 2013