terça-feira, 5 de abril de 2016

IN MEMORIAN: O Senhor Dom António

Fevereiro. Já lá vão quarenta anos *. E foi, num dia de Fevereiro, que esta Terra, a minha, se vestiu de luto, porque é de luto que todos vestem, quando a tristeza lhes enregela os ossos, quando a dor lhes amortalha a alma, quando a morte lhes rouba pedaços das próprias vidas.
Foi, assim, de luto, que esta Terra, a minha, se vestiu, nesse dia. Era Fevereiro e já lá vão quarenta anos. Ao cair da tarde, quando deviam anunciar as Trindades, os sinos dobraram do alto das torres das duas igrejas, espalhando crepes sobre os telhados da Vila. E, sem bater às portas, o silêncio entrou em todas as casas, da Porta de Montalvão à Fonte da Pipa, e, sem convite, a dor sentou-se a todas as mesas, do Dafundo ao cimo da Estrada de Alpalhão, e, sem força que a detivesse, as lágrimas assomaram em todos os olhos, do Canto dos Loureiros ao Largo da Deveza. A morte passou por aqui.
 Se, como escreveu Vieira, “ a morte tem duas portas: uma de vidro, por onde se sai da vida e outra de diamante, por onde se entra na eternidade”, então, nesse dia, era Fevereiro e já lá vão quarenta anos, alguém transpôs as duas portas de um só passo: deixou a vida e entrou na eternidade. Mas, na eternidade havia ele entrado, já, quando, num outro dia, de um outro Fevereiro, trocara os bens terrenos pelo bem-estar de todos quantos estavam mal, quando se despojara de tudo em benefício daqueles que nada tinham. O mesmo Vieira escreveu, também, “que os bens e as grandezas do mundo falsamente se chamam bens, porque são males, e sem razão se chamam grandezas, porque são pouquidades... e esses a quem o mundo chama grandes bens, só são grandes quando se deixam...”
O senhor Dom António (ainda que sempre presente, é a sua memória que evocamos, hoje) deixara-os. Todos. Todos os seus bens, todas as suas grandezas, toda a sua generosidade, o seu espírito culto, o seu intelecto benfazejo, a sua alma enorme e magnânima. E porque sempre que o sol se esconde de um lado, vai dar luz e calor a outro, os pobres desta Terra, a minha, a quem, ainda em vida, tudo dera, começaram a ter o sol e calor nas suas vidas. Os pobres a quem tudo legara, ficaram menos pobres.
E, insondável capricho, tornando-se pobre, Ele ficou mais rico. Entrou na eternidade, que não tem princípio nem fim, numa eternidade onde só os eleitos entram, porque a sua memória fica, para sempre, no coração dos homens. E a eternidade é isto. Por isso, hoje, em Fevereiro e já lá vão quarenta anos, esta Terra, a minha, que já foi pobre mas, nunca, ingrata, curva-se e, de joelhos e mãos erguidas, reza e chora e lembra e rende a homenagem mais sentida ao Homem que lhe quis, como se fosse sua, que a acarinhou, não sendo seu filho, e a presenteou como a única e muito querida filha.
Quando o calor lhes abrasa o peito, quando a saudade lhes afoga a alma, quando a felicidade lhes transborda a vida, os homens levantam as majestosas catedrais ao culto dos seus Deuses; erguem os mais ricos altares em louvor dos seus santos; constroem os mais grandiosos monumentos, em honra dos seus Heróis e escrevem as mais belas páginas, em louvor dos seus Eleitos. Dom António Lobo da Silveira (Alvito), o senhor Dom António, terá sido tudo isto. Mas tudo isto, também, seria desnecessário para o nobre mais plebeu, para o mendigo mais fidalgo, para o rico mais pobre e, ao mesmo tempo, o pobre mais rico, que cruzou as ruas desta Terra, a minha.
Fevereiro. Já lá vão quarenta anos. E, todos os dias, a sua sombra passa, ainda, mal pisando as pedras da velha rua da Cadeia, até ao covil dos Lobos. E, à tarde, quando a nortada começa a soprar dos lados de Espanha, a mesma sombra, afagando o chão, regressa ao solar, que teve o seu nome.
Sombra tutelar. Sombra, apenas, ainda que com a majestade de uma catedral, com a riqueza de um altar, com a grandiosidade de um monumento e com a beleza de um livro de oiro. Mas, um dia, quem sabe, talvez, num outro Fevereiro, o sol nasça de outro lado e os rouxinóis voltem a cantar nos loureiros do Canto de São Pedro.
Carlos Tomás Cebola – Fevereiro de 2001
* Nota
D. António Lobo da Silveira (Alvito) faleceu há 50 anos, em Fevereiro de 1961. O presente artigo de Carlos Tomás Cebola foi publicado na edição nº 78 do Jornal de Nisa (Fev. 2001) e a sua re-publicação destina-se a assinalar os 50 anos do falecimento de uma das figuras mais gratas que os nisenses não deixam de recordar com carinho e saudade.