sexta-feira, 16 de junho de 2017

VIDAS: Caetano Tomás São Pedro

Uma das (últimas) figuras populares de Nisa
É um homem de expressão fácil e olhar atento, nos seus 86 anos de uma vida cheia de mil episódios e peripécias. No relato que nos fez, de algumas dessas "passagens da vida", há sempre um motivo hilariante, alegre, divertido, a rematar e a concluir de forma prazenteira, o capítulo da conversa.
Caros leitores, fiquem com Caetano Tomás S. Pedro, uma das figuras populares de Nisa e vejam, por ele  mesmo que, face às desgraças que por aí vão, rir (ainda) é o melhor remédio...
Este homem, se tem sido aproveitado, dava um actor de primeira água. Os tiques, as expressões, os gestos, repentinos, ou as respostas desconcertantes, fizeram dele uma das figuras típicas e populares mais conhecidas de Nisa.
De origem modesta, não menos modesta e humilde tem sido a sua vida de mais de oitenta anos. Simples, sim, mas sem perder o sentido da alegria e do divertimento.
Caetano Tomás S. Pedro foi aprendiz de sapateiro, padeiro, pintor, caiador, homem de mil ofícios, malabarista das palavras, humorista nas horas vagas e sempre que a oportunidade se lhe deparou. Apesar da idade avançada, mantém um sorriso permanente, aberto e malandro,de orelha a orelha, a que junta um olhar vivo, penetrante, que o coloca em alerta e pronto para a resposta ou para um trejeito humorístico capaz de fazer rir as pedras da calçada.
A princípio, receoso e desconfiado, começou por declinar a conversa. Mas, espicaçado nos seus brios, para alguns dos episódios por si vividos  e intencionalmente, desvirtuados, logo ripostou deitando fora as hesitações iniciais, numa conversa de mais de duas horas, em que sintetizou o "filme " da sua vida.
A “Praça” lugar de nascimento
"Nasci na Praça, numa casa onde está hoje a Fonte do Frade. Andei à escola até à quarta classe, na escola do Rossio, mas não cheguei a fazer o exame. O professor era o senhor José Dinis Paralta e no dia do exame, não me agradou aquilo e vim-me embora. Saltei pela janela e, oh! patas!..."
Esta é uma das muitas peripécias que Caetano Tomás recorda. Já sem o ouvido e o olhar arguto de outrora, refugia-se na falta de audição para fugir a alguma pergunta mais incómoda para, logo que a oportunidade aparece, se apressar a dizer que "só não ouve o que não lhe agrada". De idade avançada, a memória já lhe vai pregando algumas partidas. Ainda assim lembra-se de ter andado como aprendiz de sapateiro na oficina do ti Lourenço Pação, na rua Direita, a dois passos da casa onde nasceu. Por pouco tempo. O estar sentado, o dia inteiro, entre solas e sapatos não ligava muito com o seu feitio, mais virado para o ar livre e por isso, a etapa seguinte levou-o até à fábrica do pão, na Devesa.
"Trabalhei na fábrica do senhor Ribeirinho uns quatro anos. Ia com uma carroça vender o pão a Alpalhão, Pé da Serra, Arez, Velada, Amieira. Numa carroça com um macho branco, lembro-me bem. Andei a vender pão cá em Nisa com um carrinho, mais o pai do senhor Corrente, o Papo-seco sem pão. Levámos o pão à senhora Isabel da Fábrica e à senhora Etelvina do José Januário. O carrinho levava 90 ou 100 pães, de quilo, que era obrigatório. Custava um bocado a esta fraca figura, empurrar o carro pelas ruas cheias de buracos. De modo que eu guardava sempre dois papo-secos do dia anterior e partia-os aos bocados e dava-os à gaitagem que em troca ajudava a empurrar o carro.  Nunca faltavam ajudas."
Depois da experiência como ajudante de padeiro, Caetano S. Pedro decidiu dar novo rumo à sua vida e criar o seu próprio emprego.
"Com a experiência que tinha adquirido, não é verdade, estabeleci-me por conta própria e criei a minha própria firma de pinturas e caiações."
Considera-se pioneiro neste género de trabalho em Nisa e no concelho. Nesta arte trabalhou com o ti Manuel Bólinhas e o ti Manel do Benfica, para além do próprio filho.
Tudo isto, numa época em que um novo trabalho artístico fazia a sua aparição: a publicidade nas paredes. Os cartazes, anunciando produtos alimentares, de limpeza para o lar, automóveis e outros, despertaram a curiosidade da "firma familiar" de Caetano S. Pedro e de um momento para o outro converteu-se em "agente publicitário". Tudo feito a rigor, como tem o cuidado de reforçar.
"Os cartazes vinham do Porto e de Lisboa, especialmente dirigidos ao Caetano Tomás S. Pedro, ou seja, a minha pessoa. Não se pense que se ganhava alguma coisa de jeito. Não senhor. Os cartazes vinham em rolos de 20 ou 30, tínhamos que colá-los segundo o desenho que os rolos traziam e em sítios certos, pois não podiam ser colados em qualquer sítio. Era uma tarefa  que fazíamos quase sempre à noite, depois do trabalho e o que se ganhava dava para beber uns copos. Só recebíamos depois de mandarmos uma carta a dizer quantos tínhamos colado e em que locais."
Não havia televisão e era a publicidade, afixada, na parede, a maior forma de divulgação de produtos de grande consumo e foi esse trabalho, assim como as pinturas e caiações que fizeram de Caetano S. Pedro uma das pessoas mais conhecidas e carismáticas de todo o concelho de Nisa.
Os fiscais das farinhas
Numa época difícil, deitou mão às tarefas e ocupações que lhe podiam garantir algum dinheiro para o sustento dos três filhos.
"Cheguei a ir ao Pé da Serra com um pneu às costas, para ganhar 25 tostões. Era um tempo custoso, mas cá o Caetano desenrascava-se sempre. Um dia ia trabalhar para as pinturas em Arez e quando cheguei à Porta da Vila estava lá o senhor Joaquim Polícia e diz para mim: "mostra-me lá a licença da bicicleta!". Como não a mostrei, não a tinha, disse-me que "não abalas daqui sem tirares a licença". Ficou-me com a bicicleta e tive que ir à Câmara tirar a licença que custava 10$50, mais do que eu ganhava por dia. Só depois é que me deixou abalar para Arez, onde cheguei quase às 11 horas".
Nota-se-lhe que não tem boas recordações da autoridade, pelo menos de alguns elementos que serviram nesse tempo.
"Uma vez vinha da taberna do ti Raposinho, vinha a cantar - eu sempre gostei muito de cantar - apareceu a Guarda e levou-me para o posto. Passei lá a noite. Dantes a  Guarda castigava muito o pessoal de trabalho. Eram mandados..."
Uma das peripécias mais conhecidas e protagonizada pelo nosso entrevistado passou-se no Pé da Serra, quando este e um amigo resolveram fazer-se passar por fiscais dos vinhos. A rir, o senhor Caetano não resiste a contar o episódio.
"Eu e o José Quintino ( o Pelota) fomos ao Pé da Serra "armados" em fiscais de vinhos. Vestidos com camisa de meia manga, azul, calça de cotim, também azul, feitas pelo Manuel Caxamela, ninguém era capaz de dizer que não éramos fiscais. O Pelota levava uma pasta que era do senhor Aníbal Vieira para fazer melhor o papel de fiscal. Chegámos à taberna do Reizinho (primo da minha mulher) e ele não estava. Apresentámo-nos como fiscais, comemos e bebemos, um pão de trigo e um queijo mole, estava tudo a correr pelo melhor e nisto chega o dono do estabelecimento. Bem, é melhor não contar mais... Tivemos que bater a "butes", corridos à pedrada, do Pé da Serra para Nisa. Não sei em quanto tempo fizemos o caminho..."
Muitos outros episódios, hilariantes, tem para contar. Um há, especial, em que a "vítima" foi a própria mãe e que considera tratar-se, apenas, de uma brincadeira.
Caetano S. Pedro era, nessa altura, um jovem e a quem algum dinheirito fazia sempre jeito, para o tabaquito. Um dia, como a mãe não se dispusesse a dar-lhe algum dinheiro - se calhar, não tinha - mostrou-lhe um papel, que ele mesmo assinara, dizendo-lhe que era  uma multa, por ter deitado água para a rua. A mãe, coitada, não teve outro remédio senão arranjar-lhe o dinheiro que antes lhe tinha negado.
Quebrado o gelo inicial, a conversa toma o caminho das festas populares, dos bailes, dos divertimentos e do tempo da juventude. Caetano S. Pedro eleva-se na cadeira, faz apelo à memória e dita para o papel, entusiasmado, quadras populares que eram cantadas e bailadas ao som do harmónio ou das castanholas. Aqui registamos algumas:
Eu um dia para te ver
Dava voltinhas à rua
Hoje já dou dinheiro
Para não ver tal figura

Ó laranja e tangerina
Eu de ti desejava um gomo
Tua mãe está julgando
Qu´eu com a boca te como.

Não te encostes à parreira
Que a parreira deita pó
Encosta-te à minha cama
Estou sozinho, durmo só.

Chamastes ao meu bigode
O poleiro dos passarinhos
Eu chamei às tuas faces
O cofre dos meus beijinhos.

Vai de carta, vai de carta
Meu raminho d´oliveira
Desculpa ir mal escrita
De amores é a primeira.

Ó minha Santa Maria
Ó minha Maria Santa
Tua casa tens no monte
Onde o passarinho canta.

O passarinho quando canta
A sua linda canção
Traz rouxinóis na garganta
E guitarradas no coração.

Ó triste da minha vida
Ó triste do meu viver
Para que quero eu a vida
Eu não sirvo para morrer.
Mário Mendes in “Jornal de Nisa” nº 253 - 2008 

quinta-feira, 8 de junho de 2017

GENTE DE ALPALHÃO: Henrique Fortunato

"A minha vida dava um filme"
Jogou à bola, lembra os jogos entre Nisa e Alpalhão e as antigas rivalidades entre as duas vilas do concelho. Os bons ou maus momentos futebolísticos do "seu" Sporting dá-lhe pano para mangas para as conversas com os clientes, entre o vai e vem do pente e da tesoura. No corte da barba, é melhor esse tipo de conversas ficar de fora, "não vá o diabo tecê-las". É a gente a falar. Barbeiro há 56 anos, conversador nato e com uma risada a terminar cada frase, é assim Henrique Martins Fortunato, um homem pacífico e uma das figuras populares de Alpalhão. Com um sorriso de orelha a orelha, contou-nos um pouco da sua vida e profissão.
"Não tenho muito para contar, ou, então, se fosse a contar todas as peripécias da minha vida, dava para fazer um grande filme. Sou barbeiro há 56 anos e estou aqui nesta casa desde 1955, há 50 anos. A taberna abriu um pouco mais tarde, há 43 anos, tem sido esta a minha vida, vai dando para me governar".
Dado o mote para a conversa, Henrique Fortunato conta-nos como foi o começo da sua actividade como barbeiro.
"Aprendi a arte de barbeiro com o ti Fernando Bate-Certo e tinha que bater certo, não é verdade? Comecei a aprender com 13 anos e assim andei até ir tirar sortes, sem ganhar um tostão. Depois de acabada a tropa é que abri o estabelecimento aqui na rua do Castelo."
Clientela é coisa que parece não faltar a este barbeiro alpalhoense, que nos diz ter muitos clientes que "vêm de Nisa, Tolosa, Gáfete, Alagoa, Castelo de Vide, Póvoa e Meadas e até de Portalegre, sem contar com as pessoas de Alpalhão".
São clientes de muitos anos, "a maioria com mais de 40 anos de idade, mas também aparecem alguns jovens, porque há poucos barbeiros".
Henrique Fortunato diz gostar da sua profissão e daquilo que faz. Já foi presidente da Junta de Freguesia, mas durante pouco tempo.
"É um cargo que só dá chatices e eu não tinha feitio para me indispôr com ninguém. Assim resolvi pedir a demissão e dedicar-me àquilo que tenho feito sempre. Sempre gostei disto e de aprender, quando vou a algum lado reparo sempre como fazem as coisas. Numa ocasião, em Lisboa, vi uma senhora a cortar cabelo e que bem que ela cortava. Desde que se aprenda e queira fazer as coisas com perfeição, é uma profissão como outra qualquer. Só não percebo porque é que há cada vez menos gente a querer ser barbeiro".
Para além da barbearia e do atendimento na taberna, Henrique Fortunato tem outras "ocupações", uma delas, a da caça, que já não pratica com a intensidade de outros tempos.
"Fui caçador durante muitos anos. Agora, as pernas já não puxam muito. Sou o sócio mais velho da reserva de Alpalhão. Sempre gostei de actividade física, para além do futebol, gostava muito de jogar chinquilho".
Sportinguista dos quatro costados, o futebol é tema recorrente de muitas conversas, seja a nível nacional ou no plano local.
"Foi uma pena acabarem com o futebol em Alpalhão. As pessoas daqui gostam muito de desporto. Noutros tempos não "havia pai" para o ciclismo e tínhamos aí bons corredores. Aos domingos o povo gostava de ir ver a bola, divertíamo-nos um bocadinho e o Alpalhão chegou a estar na 3ª divisão. Agora parece que há aí uma malta que vai pôr o futebol outra vez em funcionamento".
Henrique não é só adepto do futebol. Foi jogador e não esquece os jogos intensos, vibrantes, nas décadas de 50 e 60. Com um sorriso rasgado, põe a memória a viajar e lembra a rivalidade com os vizinhos de Nisa.
"Eram grandes jogos, com muita gente a assistir. Jogava-se por amor à camisola, não havia prémios de jogo nem nada disso. Ainda joguei contra o Fatan. Uma vez estávamos a ganhar 2 - 0 e fomos perder 2 - 8. Joguei também contra o Vilela e lembro-me bem, o Vilela não me ganhava uma bola".
Recordações de quem deixou para trás mais de cinquenta anos entre barbas e cabelos, pentes e tesouras, sucessos e desilusões do "seu" Sporting e que agora só pensa em manter a saúde, sem dúvida a maior riqueza para um Henrique que, para além de barbeiro, tem uma Fortuna(to). Apenas no nome e na alegria que espalha, tá bom de ver.
Mário Mendes in “Jornal de Nisa” – Março de 2008