A
emigração portuguesa para França, nas décadas de 60 e 70 do século passado,
particularmente, a dos norte-alentejanos, em busca da esperança e de melhores
condições de vida, representou uma autêntica epopeia, escrita com palavras de
sofrimento, coragem e saudade. Está por fazer, ainda, o retrato dessa época em
que as aldeias e vilas do Alentejo começaram a ficar desertas e a verem partir,
pela calada da noite, os braços válidos e activos dos homens a quem o país
negava o essencial de uma vida digna.
Falar
de emigração
Nisa,
três da tarde, num dia de calor sufocante. A casa, no Boqueirão, onde funcionou
durante anos a delegação concelhia da Assistência Nacional aos Tuberculosos, de
triste memória, serve agora de Centro de Convívio onde idosos de várias idades
podem jogar às cartas, xadrez, dominó, ver televisão ou ler jornais e revistas.
Aí
encontrámos um grupo de nisenses, com uma história de vida comum, a da
emigração. Três deles demandaram terras de França, e são viúvos. O outro,
abalou até Lisboa. Todos, à procura de uma vida melhor.
Percursos
de vida que quiseram partilhar connosco e que constituem pequenas amostras da
realidade social e política vivida em Portugal nos anos 60.
Joaquim
da Graça Basso, o mais velho do grupo, tem 81 anos, 22 dos quais a trabalhar em
França na região de Tours.
“Fui
para França em 1965 à procura de trabalho e de melhores condições de vida. Em
Nisa estive até aos 35 anos, partia e fornecia pedra para as obras. A minha mulher
vendia peixe. Era uma vida de sacrifício e pouco rentável, mas íamos
sobrevivendo, até que começou a faltar trabalho e fui obrigado a emigrar.
Estive três meses a trabalhar sem contrato, como servente. Depois as coisas
compuseram-se e ganhei a minha reforma a trabalhar na construção civil.”
Joaquim
Basso não gosta de recordar o que passou para chegar a França e prefere, antes,
lembrar o que a vida de emigrante lhe proporcionou.
“Trabalhávamos
muito e no duro, mas se não tivesse emigrado nunca poderia ter construído o
prédio que tenho e ter pago os estudos ao meu filho que se formou em Medicina. Acho que
os emigrantes deviam ser homenageados em Nisa, com um monumento, para que as
pessoas não esqueçam o regime que tivemos e a história dos milhares de nisenses
que foram obrigados a partir, uma história escrita com sangue, suor e
lágrimas”.
Manuel
Quintino da Silva Dinis (Manuel Comporta), com 70 anos, é o mais novo dos
quatro, e talvez por isso, o que tem mais “fresco” na memória, o drama da
emigração.
“Fui
para França, “a salto”, clandestinamente, em 1966. Trabalhava no campo e
ganhava-se pouco. Segui o rumo de outros conterrâneos e do que passei para
chegar a Toulouse, fiz umas quadras para registo dos mais novos. Em França
trabalhei 3 anos na construção civil e mais tarde numa estação de serviço da
Móbil onde passei à reforma, em 1996. Dois dos meus filhos nasceram em França,
um foi de cá com mês e meio de vida. Reparto a minha vida entre França e
Portugal. Venho muitas vezes a Nisa matar saudades, os meus filhos gostam da
terra e também cá vêm.”
Manuel
Dinis fala da França com orgulho e gratidão. “Deu-me trabalho, uma vida melhor
e mais digna. Deu-nos a liberdade que cá não tínhamos e por isso também penso
que se justifica uma homenagem aos emigrantes, aos filhos de Nisa que abalaram
para França, para outros países e também para Lisboa e outras terras
portuguesas. Um monumento seria de inteira justiça, pelo que nós sofremos e
pelo que demos ao país.”
António
Maria Marquês, 80 anos, não precisou de passaporte de turista, nem de ir “a
salto” para rumar até à capital.
“Tinha
34 anos quando abalei para Lisboa. Trabalhava no campo, nem sempre havia
trabalho, ganhava-se mal e era preciso sustentar a família. Trabalhei na
Presmalte e na Fábrica de Fogões Portugal, na Póvoa de Santa Iria. Reformei-me
aos 65 anos e regressei a Nisa. Como me sentia com forças e durante algum tempo
ainda trabalhei como servente de pedreiro.”
Gosta
de passar a tarde no Centro de Convívio, quando há companheiros e ali se
entretém a jogar dominó e a olhar de soslaio algum programa de televisão.
De
França, ouve com atenção o que os companheiros lhe contam e dá o seu
assentimento à ideia de um monumento aos emigrantes, ele que também foi
emigrante no seu próprio país.
António
Maria Salgueiro, abalou para França em 1966. Fixou-se na zona onde residem e
trabalham a maioria dos nisenses em terras gaulesas, a vila de Azay-le-Rideau,
na região de Indre et Loire, no centro de França. Emigrou pelas mesmas razões
dos seus companheiros, tendo trabalhado na construção civil e numa fábrica de
tijolo.
Reformado,
79 anos, divide a sua vida entre Portugal e França.
“ A
França deu-me a vida que tenho. Cá andava sempre com uma mão detrás e outra à frente. Tenho três filhos, dois estão em França e a minha filha está na
Policia, em Lisboa.
Gosto de vir a Nisa e encontrar-me com os meus “artilheiros”,
passar um pouco de tempo no jardim, no centro de convívio ou a fazer qualquer
coisa no campo. Quem se habituou ao trabalho nunca se desabitua. Em França para
se ganhar e poupar alguma coisa tínhamos que trabalhar no duro. Não pensem que
nos davam o salário e as condições de mão beijada. Não. Por isso, concordo com
o que disseram sobre o monumento aos emigrantes e acho que já devia estar
feito.
Os
nisenses estão bem vistos e integrados em França, principalmente na região de
Tours, onde moro. É justo que reconheçam o que nós fizemos pelo país”.
Jaime
Cortesão em “Os Emigrantes” escreveu: “ Partir é quase morrer. / Pode ser p´ra
nunca mais: / Dentro do peito a bater / Um sino toca a sinais.
Manuel
Dinis (Comporta) deixa-nos um relato, em verso, do que foi a epopeia da
emigração portuguesa clandestina para França. Um drama que ele próprio viveu e
sentiu na pele. Em busca de um futuro melhor!
A
ida de um clandestino de Portugal para França – Anos 60
Abalei
da minha terra
Sem
dinheiro nem passaporte
Com
destino para França
Sujeito
a encontrar a morte
Foi
de Nisa que parti
Com
os olhos todos molhados
Deixando
a minha mulher
Há
pouco tempo casados.
A
Castelo Branco cheguei
Para
o passador encontrar
Daí
tomámos o rumo
Para
um rio atravessar.
Estivemos
no meio de um mato
Uma
noite e um dia
Cheio
de frio e fome
Com
a barriga vazia.
Chegámos
a uma terra
Que
se chamava Naves Frias
Aí
estivemos fechados
Cinco
noites e cinco dias.
Éramos
catorze homens
Dentro
deste palheirão
À
espera que nos dessem
Um
bocadinho de pão.
Daí
seguimos viagem
Cansados
mas sorridentes
De
catorze já passámos
A
ser mais de duzentos.
Quando
foi à noitinha
Toda
a gente se pôs de pé
Foi
esta a maior etapa
Quarenta
e quatro horas a pé.
Éramos
só dois de Nisa
Tinha
um bom companheiro
É
um rapaz que se chama
O
amigo José Salgueiro.
Ao
fim de quarenta e quatro horas
Aí
parámos então
Para
descansar um pouco
À
espera de um camião.
...
Chegámos então a França
A
um monte fomos parar
À
espera do bilhete
Para
o comboio apanhar.
Doze
dias eu demorei
Para
este país encontrar
Não
desejo a ninguém
Este
sacrifício passar.
Todos
estes sofrimentos
Toda
esta amargura
Para
deixar o país
No
tempo da Ditadura.
Só
os ricos é que mandavam
Nós
nem podíamos falar
Podemos
“agradecer”
A
um chamado Salazar.
É
isto que me dá pena
É
isto que me revolta
O
autor destes versos
Chama-se,
Manuel Comporta.
Sem
dinheiro para a viagem
Para
pagar ao passador
Foi
a minha avó Pelota
Que
me fez este favor.
Com
isto vou terminar
Manuel
Comporta me assino
Para
que toda a gente saiba
O
que foi um Clandestino!
Manuel
Comporta - 6 Março de 1966