sábado, 30 de abril de 2016

À FLOR DA PELE: "Correio de Nisa", um jornal "correcto e leal"

Primeiro número saiu a público há 67 anos
Há sessenta e sete anos, no Verão de 1945, a Europa vivia ainda, receosa e expectante, esperando com fervor o fim da 2ª Guerra Mundial. Tempos difíceis, de medo e de incertezas que não obstaram, no entanto, a que em Nisa surgisse o primeiro número de um jornal, designado como "semanário de informação e cultura", sob a direcção de Abel Monteiro.
O lançamento de um jornal, numa vila e sede de concelho, sem tradições jornalísticas, constituiu uma autêntica pedrada no charco e motivo de natural curiosidade e, por que não dizê-lo, uma aventura arriscada, para mais tendo a iniciativa partido de quem não era natural da terra.
No dia 22 de Julho de 1945, domingo, apresentava-se pela primeira vez a público o "Correio de Nisa", um jornal "correcto e leal, ao serviço do povo, porque só para ele foi creado".
O primeiro número, com quatro páginas, ostentava na capa o título, entre um desenho de Duarte d´Armas – que serviu durante anos como logótipo do jornal – e um pequeno anúncio publicitário, uma inovação para a época.
No editorial, Abel Monteiro definia o rumo do semanário como "um jornal de província que nasce paupérrimo", mas disposto a calcorrear a " vereda agreste da existência, sempre no nosso lugar, sem atropelos nem má creação, com que nunca se harmonizará a disciplina e o bom senso".
O primeiro número do "Correio de Nisa" tinha como editor João da Cruz Rosa, comerciante, foi impresso na Tipografia Castelovidense, funcionando a redacção e a administração numa casa do largo António José de Almeida, paredes-meias com a Igreja Matriz, de onde sairia, anos mais tarde, para residência do seu director na rua dos Combatentes da Grande Guerra.
Custava cinco tostões, este novo jornal, que como a restante imprensa do país era "Visado pelo censor", neste caso, o do distrito.
 A primeira página, bastante cheia, mostrava no canto inferior direito, uma fotografia do jardim público "retiro virente e acolhedor que a população procura, em noites cálidas de estio, para repouso da sua magnífica epopeia do trabalho" como dizia a legenda.
Astrigildo Chaves, pintor e poeta nisense, nascido no século XIX era, na pena de António Mota, colaborador do CN, um "artista de transcendentes concepções". Uma transcendência que se manteve apagada e desconhecida dos seus conterrâneos até aos nossos dias.
Dias Loução escrevia sobre D. Dinis, o fundador de Nisa, "misto de lavrador e de poeta… dedilhava suavemente a lira, eterno enamorado da beleza".
O professor José Francisco Figueiredo, na esteira de outras colaborações que mantinha com a imprensa regional (Brados do Alentejo") e nacional (O Século, Diário de Notícias, entre outros) assinava um texto Ça Marche, em que reafirmava os valores da gente de Nisa, e das obras realizadas, lembrando a necessidade de progresso e a resolução de problemas locais.
Esta seria, de resto, a sua marca de intervenção ao longo de várias edições do jornal, até à morte do prestigiado professor, em 1951.
Nas páginas seguintes, surgiam as pequenas notícias, pessoais, umas, e onde se realçava o "modus vivendi" das elites da terra, de interesse mais geral, outras, pedindo providências urgentes para determinadas situações ou assinalando os melhoramentos que iam surgindo.
A poesia, com um soneto de Cesário Verde, fazia a sua aparição logo neste primeiro número e iria ser uma constante durante a existência do semanário e que o marcou de forma positiva.
Por ali passaram, a par de poetas de valor nacional, alguns inéditos do nisense José Gomes Correia, A. Bagulho e poetas populares do concelho, descrevendo "histórias de vida" em versos de singular sabor, muitos deles ainda hoje recordados.
A cultura, a memória histórica, os pequenos anúncios, alguns de saboroso recorte e que nos remetem para a imagem da Nisa comercial e industrial não só da décadas de 40 - a da fundação do jornal - como das seguintes até 1973 quando saiu a público o último número do "Correio de Nisa".
 Registe-se que, há mais de 60 anos, ao lado do título do jornal, aparece um espaço publicitário, fazendo jus ao pragmatismo do director Abel Monteiro que, sem transigências, soube separar o essencial do acessório, e utilizando esse espaço fulcral, numa "tribuna", minúscula é certo, mas bem visível, em defesa dos mais elevados interesses do concelho e da região.
Quando em 1970, Abel Monteiro em edições sucessivas do jornal utiliza o espaço ao lado do título para pedir a "Restauração da Universidade de Évora" revela a sua alma regionalista, o seu profundo amor bairrista numa atitude tanto mais de salientar, quando ele, setubalense por nascimento, assume como poucos a defesa e o restabelecimento de uma instituição de prestígio e que, por força da determinação de muitos alentejanos, viria a ser, no plano da cultura e da educação, anos mais tarde, a alma mater de Évora e do Alentejo.
Abel Monteiro, professor e cidadão íntegro
Abel Monteiro foi, incontestavelmente, um dos homens bons de Nisa. Como professor, metódico e de grande cultura, preparou algumas gerações de estudantes para o exame de admissão aos liceus, leccionando diversas disciplinas na área de Humanidades (português, filosofia, latim, geografia, desenho, etc.).
 Foi um dos precursores do ensino preparatório público, em Nisa, objectivo pelo qual se bateu e que viu concretizado com a criação da Escola Preparatória Prof. Mendes dos Remédios, no início dos anos 70 e da qual foi professor.
A sua determinação e carácter recto, fizeram dele, enquanto jornalista e director do "Correio de Nisa", um dos mais acutilantes defensores da urbe nisense e do concelho, não receando enfrentar os poderes instituídos, sempre que a razão, a justiça e o supremo interesse da população fossem mais fortes.
O seu semanário de informação e cultura, formava, instruía, mas reclamava também, para o concelho e para os seus habitantes, soluções para muitos dos problemas com que se debatiam e aspirações a que muito justamente se julgavam com direito.
O "Correio de Nisa", com uma linguagem esmerada - ou não fosse o seu director, professor de português e latim - se, por um lado, retratava o país conservador e contido nos canônes estabelecidos pela doutrina do Estado Novo, por outro lado e convicto da força da razão, não deixava de ser uma tribuna em defesa do progresso e das aspirações do concelho de Nisa, muitas vezes, incomodando os "senhores da Câmara" e de outras instituições, cuja reacção - é justo referi-lo - a maior parte das vezes, consistia na resolução dos problemas ou situações com que eram visados.
Há 67 anos nascia o primeiro jornal digno desse nome, que Nisa teve. Recordamos, aqui, a efeméride, com um propósito bem delineado: lembrar a vida e obra do seu fundador, Dr. Abel Monteiro, como jornalista, como professor e como regionalista.
Uma vida dedicada ao ensino e trabalho pedagógico em prol de Nisa, de várias gerações de estudantes, méritos que deviam ser devidamente considerados e reconhecidos pela autarquia nisense.
Abel Monteiro, não sendo de Nisa, foi um nisorro, no melhor sentido que a expressão encerra.
Honras lhe sejam feitas, por quem tem a obrigação ética e moral de as promover. Por nós, ficaremos à espera e se a tanto formos obrigados, voltaremos ao tema.
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 25/7/2012