O
filho de Paiva Couceiro
Em
1911 quando a República era ainda uma criança, a tentar dar os primeiros
passos, António, um jovem de Lisboa foi incorporado no Exército Português, mas
as suas convicções políticas levá-lo-iam a desertar. Nesse mesmo ano, fugiu
para Itália. No Verão de 1912 António Augusto encontrava-se em Roma mas as
coisas não lhe corriam bem. Gastara quase todo o seu dinheiro e o futuro
apresenta-se pouco risonho. Tomou, então a decisão de regressar. Mal tratado,
fraco, e desprovido de posses foi com grandes dificuldades que viajou para
Portugal. Entrou no país em Novembro de 1912, pelo concelho de Nisa, mais
concretamente por terras de Montalvão. Ainda que cansado percebeu que não era chegada
a hora de parar. Montalvão era demasiado grande para esconder um fugitivo.
Rumou para Oeste, atravessa as charnecas e avistou as casas de uma pequena
aldeia, iniciando a descida para a aldeia de Salavessa.
Os
habitantes da aldeia recearam, a princípio, esta figura singular. Quem era? De
onde vinha? O que pretendia? António Augusto respondeu aos salavessenses:
"Chamo-me António Augusto de Jesus e sou filho de Paiva Couceiro".
Henrique de Paiva Couceiro nasceu em Lisboa em 1861. Militar, ganhou fama devido
aos combates em que esteve envolvido no final do Século XIX em Angola e
Moçambique. Acérrimo defensor da Monarquia, bateu-se pela causa Monárquica,
após a implantação da república, tendo-se envolvido em várias acções para
derrubar o novo regime. O recém-chegado dizia-se filho deste militar sendo o
seu nascimento fruto de uma aventura amorosa.
Com
o passar do tempo acabou por se integrar na estrutura social da aldeia. António
Augusto lança-se no desafio de ensinar às crianças as primeiras letras. Acanhados,
os miúdos lá foram aparecendo. Começa com dois, depois mais dois, até que se
constitui aquilo a que hoje chamaríamos uma turma. O novo "professor"
prepara as crianças para o exame da terceira classe. Carismático, fez sucesso a
ensinar.
Tudo
parecia correr bem, mas António era um desertor. Em 1915 as autoridades
detectam a sua presença e foi preso em Salavessa. A aldeia viveu momentos de choque, não
queriam os seus habitantes acreditar que o senhor António Augusto estava a ser
levado pela Guarda. As crianças, sem tempo para se despedirem, acompanharam o
seu mestre até ao ribeiro de Fiverlo, já no caminho para o Pé da Serra. O
professor leva as mãos amarradas, não pode dizer adeus, vira o rosto sobre o
ombro e ensaia um último olhar. As crianças permanecem na margem direita do
Fiverlo, não arredam pé, continuando no local até que, finalmente, deixam de
ouvir o bater dos cascos dos cavalos sobre as pedras do caminho. O seu sonho
terminara.
António
Augusto de Jesus é julgado e de imediato é deportado para a África Portuguesa.
É de África que escreve algumas cartas para Salavessa. Numa das cartas envia
uns desenhos. São esboços a carvão. O professor desenhara umas crianças saídas
de um quadro que insistira em permanecer na sua mente, a imagem de umas crianças
paradas junto às encostas escarpadas do ribeiro de Fiverlo, alunos
despedindo-se do mestre.
Em
Moçambique, António Augusto cumpriu a sua pena. Na terra onde o pai fora o
primeiro, o filho é, agora, um prisioneiro. Mas a história não termina em
África. Após cumprir o castigo, António Augusto regressou a Portugal. Ao chegar
a Lisboa partiu de imediato. Partiu para o Alentejo, para Nisa, para Salavessa.
Foi recebido com alegria e entusiasmo. Apesar de não ser professor oficial, ali
permaneceu e ali continuou a fazer o que mais gostava, ensinar crianças e
prepará-las para os exames.
Em
1922 o Governo aprovou a construção de uma escola oficial em Salavessa. A nova
escola primária ficou pronta e recebeu os primeiros alunos em 1923. Com a
escola apareceram os primeiros professores formados e a missão de António
Augusto terminou, abandonando definitivamente a aldeia. A partir desta altura
afirmaria sempre, no decurso das suas viagens, ser natural de Salavessa, a
aldeia que tão bem o acolhera. A aldeia que lhe dera protecção e lhe matara a
fome sem olhar ao seu fato roto ou à sua barba esquálida.
Era
realmente filho de Paiva Couceiro? Creio que nunca o saberemos. Mas que importa
isso. O mais importante foi a formação que proporcionou às crianças, semente
lançada à terra, semente do saber e do conhecimento, de importância suprema em
todas as sociedades e em todos os tempos. O sonho das crianças não terminou na
margem escarpada do ribeiro de Fiverlo. O sonho de saber ler e escrever
concretizou-se e serviu de certo modo para contornar obstáculos numa vida de
privações.
Quem
mo disse foi uma criança. Uma criança de noventa anos. Uma criança que assistiu
à sua captura. Acompanhou o professor até onde foi possível, até à velha ponte.
Ali permaneceu até ao anoitecer. Até deixar de ouvir o bater dos cascos dos
cavalos sobre as pedras do caminho. Quem mo disse esteve lá. Disse-lhe adeus.
Ali, no caminho de Salavessa para o Pé da Serra. Em cima do velho pontão do
Fiverlo trocaram o que pensaram ser o último olhar. Naquele momento a velha
ponte foi fronteira de separação, para o aluno entre o sonho e a realidade,
para o mestre entre o cárcere e a liberdade.