terça-feira, 8 de março de 2016

IN MEMORIAN - Ti José Cebola: Um “nisorro” centenário

Passou anos a fio a conduzir carretas, trabalhando de sol a sol, servindo a casa de vários “amos”, como Jacob.
Tem ainda, apesar da idade avançada, uma memória extraordinária, de onde, em conversa fluente e animada, saem milhentas histórias, episódios campesinos, recordações de uma infância que meteu “reis e republicanos”.
Aqui vos deixamos um pouco da vida de Ti José Cebola: Um “nisorro” centenário.
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José Dinis Caldeira Cebola nasceu a 7 de Outubro de 1890. O seu centésimo aniversário serviu de pretexto para uma visita a este ancião, nisorro dos quatro costados, que nos recebeu com simpatia e se dispôs a falar um pouco sobre a sua vida.
O seu desfiar de recordações traz à baila assuntos e acontecimentos tão díspares como a Implantação da República ou a “pneumónica”, episódios da sua passagem pela tropa ou da vida dura nos campos.
Íamos por breves minutos, ficámos por mais de duas horas e, como Fernando Pessoa, diríamos: valeu a pena!
Um atirador muito especial
Sr. José, lembra-se da República?
“Foi no ano em que eu fui para a tropa, mas não sei bem o que isso foi, pois andava a trabalhar no campo, em casa do senhor Inchado e foram-me dizer: “andas práqui e com tantas festas lá em Nisa, foguetes, música na rua e toda a gente a dar vivas?
Lembro-me que as pessoas cantavam uma moda que dizia assim:
“Lá vem a Maria da Fonte
Com a sua saia curta
Rebaixando a Monarquia
Dando vivas à República”
Nesse ano (1910) em Novembro, assentei praça em Portalegre (era “Caçador”, depois saiu um decreto e passou a Infantaria) e ao cabo de oito meses íamos à escola de tiro de Castelo Barnco, para atirador-especial.

Estive em Lisboa por três vezes, a fazer serviço às “cortes” e na Cova da Moura. Dormíamos em Belém, muito mal, em cima de sacas velhas.
Voltámos para Portalegre onde chegámos no 1º de Maio. Lembro-me porque havia grandes festas nas ruas. Nessa altura o comandante disse-nos que os que quisessem passar á reserva podiam sair. Nem olhei para trás, voltei para Nisa e para o trabalho da lavôra (lavoura).
Uma vida de carreteiro
“Estive em casa da srª Joaquina à Bicha e no senhor José Carujeiro, por duas vezes. Na priemira vez saí ao fim de três anos. Pedi mais jorna e por 20 escudos por mês deixaram-me abalar.
Andei semanas inteiras a acarretar pão. Cheguei a apanhar seis moios de pão num dia. De madrugada já estava no termo de Castelo de Vide a carregar. Descarregava no Alto de Palhais e carregava o pão já debulhado. Naquele tempo não havia máquinas como há hoje, a debulha era feita toda à “unha de vaca”. Andavam os “ratinhos” a malhar.
Carregava em Palhais e chegava aqui pela hora do calor, subia dois andares de escadas, vezes sem conta com sacas de pão, as camisas podiam torcer-se com o suor.
Era uma vida dura, a desse tempo?
Em casa de lavradores não havia sábados nem domingos, era trabalhar e quem queria, queria, senão... Ganhava-se muito mal, 5 alqueires de centeio e dez escudos e era para quem queria. Os campos pareciam jardins. Havia searas de centeio, de trigo, grandes milharadas, tudo feito a braço do homem.
Com um a vida assim como é que se divertiam?
JC (risada) – Divertir? “Olhá lé ou” (expressão popular de Nisa). Eu tinha a “pensão” com o gado. Tinha que ir ceifar para dar comida aos animais. Os criados vinham à vila e só depois deles voltarem é que eu podia ir. Ia à vila para arranjar a fatada?
E para ver as cachopas, não?
JC (risadas) – Eu namorei praí um ano. Casei com 23 anos. Nos domingos, ao fim de tarde, havia bailes nas ruas. No Canto do Poço, no Largo da Devesa, no Largo do Mártir. As moças cantavam e apareciam tocadores de harmóni, gaitas de beiços e cigarrinhas. Pelo Carnaval os bailes eram dentro de casa à luz da candeia, mas eu gostava pouco de bailes...
Casei e o quintal de festa foi no Ti Manel da Martinha. Apanhei 40 cabeças de gado (badanas). Nessa altura uma badana valia 5 escudos e um alqueire de trigo, 6 escudos.
Lembranças da pneumónica
Senhor José, lembra-se da entrada para a escola?
- “À escola? Vá lá que fosse aí uma semana. Depois saí. Quem é que ia à escola naquele tempo? Só se fosse gente abastada!...
Quando tinha dez anos já andava em cima de uma burra, a apanhar leite gordo de uma queijeira. Foi sempre a trabalhar e sem regalias. A vida era muito dura. Éramos sete irmãos e todos faziam falta ao sustento da casa. Houve a guerra de 14 e a “pneumónica”...

Foi uma grande epidemia?
“Nem queira saber. Morreu muita força de gente. Famílias inteiras, casas que fecharam. Queimava-se rama de eucalipto nas ruas para alevantar a peste.
Senhor José, como é que chegou a esta idade? Alimentava-se bem?
Pró campo levava uma talega com feijões pretos para toda a semana. Era feijões de manhã e à noite. Não sabíamos o que era um bocadinho de carne. Mesmo assim nunca tive nenhuma doença. Só no último patrão onde estive, o Dr. Jaime, tive o mal da tensão. Dizia que me ia embora... e agora é como me vê.
Ti José Cebola, uma vida a trabalhar no campo. Uma lucidez espantosa, uma memória notável que se faz notar em pormenores. 100 anos. Uma vida. Quantas lições?