Passou
anos a fio a conduzir carretas, trabalhando de sol a sol, servindo a casa de
vários “amos”, como Jacob.
Tem
ainda, apesar da idade avançada, uma memória extraordinária, de onde, em
conversa fluente e animada, saem milhentas histórias, episódios campesinos,
recordações de uma infância que meteu “reis e republicanos”.
Aqui
vos deixamos um pouco da vida de Ti José Cebola: Um “nisorro” centenário.
José
Dinis Caldeira Cebola nasceu a 7 de Outubro de 1890. O seu centésimo
aniversário serviu de pretexto para uma visita a este ancião, nisorro dos
quatro costados, que nos recebeu com simpatia e se dispôs a falar um pouco
sobre a sua vida.
O
seu desfiar de recordações traz à baila assuntos e acontecimentos tão díspares
como a Implantação da República ou a “pneumónica”, episódios da sua passagem
pela tropa ou da vida dura nos campos.
Íamos
por breves minutos, ficámos por mais de duas horas e, como Fernando Pessoa,
diríamos: valeu a pena!
Um
atirador muito especial
Sr.
José, lembra-se da República?
“Foi
no ano em que eu fui para a tropa, mas não sei bem o que isso foi, pois andava
a trabalhar no campo, em casa do senhor Inchado e foram-me dizer: “andas práqui
e com tantas festas lá em Nisa, foguetes, música na rua e toda a gente a dar
vivas?
Lembro-me
que as pessoas cantavam uma moda que dizia assim:
“Lá
vem a Maria da Fonte
Com
a sua saia curta
Rebaixando
a Monarquia
Dando
vivas à República”
Nesse
ano (1910) em Novembro, assentei praça em Portalegre (era “Caçador”, depois
saiu um decreto e passou a Infantaria) e ao cabo de oito meses íamos à escola
de tiro de Castelo Barnco, para atirador-especial.
Estive
em Lisboa por três vezes, a fazer serviço às “cortes” e na Cova da Moura.
Dormíamos em Belém, muito mal, em cima de sacas velhas.
Voltámos
para Portalegre onde chegámos no 1º de Maio. Lembro-me porque havia grandes
festas nas ruas. Nessa altura o comandante disse-nos que os que quisessem
passar á reserva podiam sair. Nem olhei para trás, voltei para Nisa e para o
trabalho da lavôra (lavoura).
Uma
vida de carreteiro
“Estive
em casa da srª Joaquina à Bicha e no senhor José Carujeiro, por duas vezes. Na
priemira vez saí ao fim de três anos. Pedi mais jorna e por 20 escudos por mês
deixaram-me abalar.
Andei
semanas inteiras a acarretar pão. Cheguei a apanhar seis moios de pão num dia.
De madrugada já estava no termo de Castelo de Vide a carregar. Descarregava no
Alto de Palhais e carregava o pão já debulhado. Naquele tempo não havia
máquinas como há hoje, a debulha era feita toda à “unha de vaca”. Andavam os
“ratinhos” a malhar.
Carregava
em Palhais e chegava aqui pela hora do calor, subia dois andares de escadas,
vezes sem conta com sacas de pão, as camisas podiam torcer-se com o suor.
Era
uma vida dura, a desse tempo?
Em
casa de lavradores não havia sábados nem domingos, era trabalhar e quem queria,
queria, senão... Ganhava-se muito mal, 5 alqueires de centeio e dez escudos e
era para quem queria. Os campos pareciam jardins. Havia searas de centeio, de
trigo, grandes milharadas, tudo feito a braço do homem.
Com
um a vida assim como é que se divertiam?
JC
(risada) – Divertir? “Olhá lé ou” (expressão popular de Nisa). Eu tinha a
“pensão” com o gado. Tinha que ir ceifar para dar comida aos animais. Os
criados vinham à vila e só depois deles voltarem é que eu podia ir. Ia à vila
para arranjar a fatada?
E
para ver as cachopas, não?
JC
(risadas) – Eu namorei praí um ano. Casei com 23 anos. Nos domingos, ao fim de
tarde, havia bailes nas ruas. No Canto do Poço, no Largo da Devesa, no Largo do
Mártir. As moças cantavam e apareciam tocadores de harmóni, gaitas de beiços e
cigarrinhas. Pelo Carnaval os bailes eram dentro de casa à luz da candeia, mas
eu gostava pouco de bailes...
Casei
e o quintal de festa foi no Ti Manel da Martinha. Apanhei 40 cabeças de gado
(badanas). Nessa altura uma badana valia 5 escudos e um alqueire de trigo, 6
escudos.
Lembranças
da pneumónica
Senhor
José, lembra-se da entrada para a escola?
-
“À escola? Vá lá que fosse aí uma semana. Depois saí. Quem é que ia à escola
naquele tempo? Só se fosse gente abastada!...
Quando
tinha dez anos já andava em cima de uma burra, a apanhar leite gordo de uma
queijeira. Foi sempre a trabalhar e sem regalias. A vida era muito dura. Éramos
sete irmãos e todos faziam falta ao sustento da casa. Houve a guerra de 14 e a
“pneumónica”...
Foi
uma grande epidemia?
“Nem
queira saber. Morreu muita força de gente. Famílias inteiras, casas que
fecharam. Queimava-se rama de eucalipto nas ruas para alevantar a peste.
Senhor
José, como é que chegou a esta idade? Alimentava-se bem?
Pró
campo levava uma talega com feijões pretos para toda a semana. Era feijões de
manhã e à noite. Não sabíamos o que era um bocadinho de carne. Mesmo assim
nunca tive nenhuma doença. Só no último patrão onde estive, o Dr. Jaime, tive o
mal da tensão. Dizia que me ia embora... e agora é como me vê.
Ti
José Cebola, uma vida a trabalhar no campo. Uma lucidez espantosa, uma memória
notável que se faz notar em pormenores. 100 anos. Uma vida. Quantas lições?