terça-feira, 15 de março de 2016

VIDAS - João Maria Sales: 30 Anos de Oleiro

João Maria Sales, 83 anos de vida, completos, no passado dia 18 de Dezembro, teve uma infância dura e feliz, como a de todos os rapazes do seu tempo. Trabalhou no campo, mas foi a dar força e jeito à roda que se fez oleiro e artista. A memória, ainda fresca, vai desfiando, sem pressas, os fios de uma vida: a de um oleiro por força da necessidade.
"A minha infância foi como a de quase toda a malta daquele tempo. Nasci em 1924 e andei à escola e quando de lá saí fui podar parreiras ou colher azeitona, trabalhos do campo. O meu irmão Manuel era oleiro e aprendeu com o ti Zé Batata, o das bicicletas. Eu tinha para aí uns 13 anos quando comecei a aprender a arte com o meu irmão, até ele ir para a tropa e quando ele foi para a vida militar, eu fui trabalhar com o ti Joaquim Maria da Piedade (Batata).
Comecei a aprender num quintal pequeno que havia na travessa Lourenço Dinis e do qual pagávamos uma renda e depois mudámos para a rua Júlio Basso, onde está agora a Tipografia Nisense.
O meu irmão entretanto casou e voltei para a travessa Lourenço Dinis e ia cozer a louça ao forno da Devesa do ti António Maria da Piedade.
Casei e fui para a rua de Angola, montei ali a oficina. Acabei por comprar um bocadito de terra e fiz lá o forno para não andar às "atenças" dos outros. Mais tarde fiz o casão para a oficina."
João Sales foi oleiro durante mais de trinta anos, uma actividade exercida por muita gente em Nisa. Fabricava louça com uma função marcadamente utilitária, um trabalho que ocupava apenas uma parte do ano.
"A olaria foi sempre uma actividade sazonal, desde Março a Outubro, que era quando a loiça dava alguma coisa. No Inverno, andávamos à azeitona e noutros serviços que apareciam.
Assim fui andando até que aos 45 anos fui operado a uma úlcera. Fui mal operado, pois deixaram-me cá uma compressa e fui de urgência para Lisboa. Lembro-me bem da partida aqui de Nisa, no dia de Natal à tardinha, a caminho do Curry Cabral, onde fui operado no dia 21 de Janeiro de 1969.
Abriram-me três vezes e depois proibiram-me de fazer louça por causa do esforço. Andei sempre com uma cinta elástica durante oito anos.
Montei então uma salsicharia na Vila, artesanal, na rua de Angola. Matava um porquinho por semana e assim me ia governando. A carne era vendida na pequena loja e tínhamos bons clientes e certos. A carne (enchidos) era feita à moda cá de Nisa e tudo corria mais ou menos até que apareceu a doença da minha mulher. Foi operada há 18 anos, mas apenas durou 6 meses. Estávamos reformados os dois por invalidez, mas já não cheguei a receber nada da pensão dela, cortaram-me, porque saiu uma lei."
Ti João Sales parece um homem de poucas palavras. A angústia e a solidão, não lhe tolheram, todavia, o raciocínio e a memória. Gosta de falar da vida, activa, de outros tempos, mas é sobre a olaria e os oleiros, essa arte tradicional, que queremos ouvi-lo. 
"Na década de 60 havia pelo menos, em Nisa, nove ou dez olarias. Só no Verão é que se fazia muita louça para vender nas estações dos caminhos de ferro. Os oleiros de Nisa eram também conhecidos por isso. Onde houvesse uma estação, lá estava alguém de Nisa a vender a louça. Eu cheguei a vender em Monfortinho, Castelo Branco, Sarnadas, Vila Velha, Ortiga, Belver, Fratel. Eu tinha uns fregueses na Fonte da Mealhada em Castelo de Vide que vendiam louça às pessoas que iam às Termas. Vendíamos também nas nossas feiras, em Nisa e no concelho, pois nas feiras fora de Nisa não podíamos vender, e vinham dois oleiros de Portalegre buscar peças para venderem nas feiras."
Sobre o funcionamento das oficinas de olaria e particularmente da sua, João Sales explica como funcionavam.
"Cada oficina tinha em média 5 ou 6 raparigas, dos 11 aos 20 anos. Saíam da escola e iam para as oficinas para fugirem ao campo. Ganhavam à peça, as mais pequenas eram pagas a 3 tostões, as maiores chegavam aos dez tostões e o pote podia render-lhes 25 tostões ou três escudos, conforme. Isto eram preços do princípio da década de 60."
Quem vê uma peça de barro, típica da olaria nisense, pode imaginar o trabalho do oleiro, movendo a roda e dando formas a uma massa disforme até ganhar a consistência de um objecto. O mesmo acontece com o trabalho das pedradeiras, todo ele feito de minúcia e atenção. Mas, certamente, muitos ignorarão a "outra parte", a menos visível desta arte: a do arrancar do barro e das pedras e o seu transporte.
"O barro vinha das Estibas, o barro branco, e da Maria Dias, do terreno do sr. José Vieira (Visconde). Não pagávamos nada pelo barro e o senhor Visconde apenas recebia em troca algumas peças, principalmente barris para as ceifas e alguns potes. Era preciso cavá-lo ao barro e para isso levávamos alguns homens. O barro estava a mais de um metro de profundidade e depois alugávamos uma camioneta de aluguer para o ir buscar. O cascalho branco íamos buscá-lo à Serra de S. Miguel e a outros sítios. O cascalho tinha de ser bem cozido para se poder partir mais facilmente."
O trabalho na oficina
"Na oficina era o mestre e era eu que ensinava a riscar (fazer os desenhos). Os desenhos eram tirados da nossa cabeça. Na "força maior", ou seja, quando havia muitos oleiros, o pedrado era "grosso". Mais tarde o meu irmão é que começou com o pedrado mais fino, devido a uma encomenda do Palácio Foz e do SNI (NR - Secretariado Nacional de Informação).
Essa louça ia para as exposições internacionais por intermédio da Drª Margarida Ribeiro, uma grande estudiosa e defensora da olaria de Nisa. Entretanto o meu irmão emigrou para a Alemanha e deixou-me os desenhos e as encomendas para eu fazer."
O ti João Sales quase estremece quando lhe perguntamos se a vida de oleiro era uma actividade bastante rentável.
"Trabalhei dos 13 aos 45 anos na arte e nunca tirei grandes proventos, era só para me governar e irmos passando a vida. No Verão, os barris para as estações eram o "forte". Era louça lisa para a casa, potes lisos, cântaros com asa para as ceifas, enfusas para as milharadas (meio cântaro), os barris para as carrêtas com duas asas e os barris "espanhóis", com quatro asas, nas quais se podia enfiar um cordel para ser transportado às costas."
As origens da olaria tradicional de Nisa estão por estudar e definir. O nosso entrevistado não duvida de que é muito antiga e avança com alguns elementos.
"Na casa onde eu morei, na Rua Angola, viveu um oleiro muito antigo, o ti João Charrinho. Era um homem que ia vender a louças com as "bestas de aparelho", com as alcofas cheias de louça; havia um outro na rua de São Tiago, o ti Zé dos Remédios, que era onde o ti João Negrito e o irmão Afonso iam cozer a louça."
A olaria de Nisa é muito antiga, vem do tempo dos reis e é uma tradição que temos". A nossa louça, o nosso barro, fazia a água fresca e por isso era muito procurada, num tempo em que não havia frigoríficos."
As figuras, as pedras, os desenhos, da olaria pedrada chamam a atenção pela sua originalidade.
Uma tradição que temos. Uma tradição para defender e preservar, ou que, pelo contrário, correrá o risco de desaparecer. Oleiro durante 30 anos, João Sales não tem dúvidas a esse respeito.
"Não vejo aprendiz nenhum. No meu tempo nunca tivemos qualquer apoio das entidades, era até a indústria mais cara que cá tínhamos. Era esse o "favor" que havia da Câmara. Fizeram um forno no Hospital Velho, uma Escola, mas nada se aproveitou, foi só estragar dinheiro para nada.
Eu acho que esta decadência da olaria começou quando nos exigiram que se pagasse aos aprendizes assim que entravam. Eu andei três anos como aprendiz ( o aprendiz dava quatro anos ao mestre), não ganhava nada e só no último ano é que os mestres davam uma gorjeta nos Domingos, aos aprendizes, porque nós já fazíamos louça. Tenho muita pena disto, mas a olaria de Nisa vai morrer."
Mário Mendes in "Fonte Nova"