João Maria Sales, 83 anos de vida, completos, no passado dia
18 de Dezembro, teve uma infância dura e feliz, como a de todos os rapazes do
seu tempo. Trabalhou no campo, mas foi a dar força e jeito à roda que se fez
oleiro e artista. A memória, ainda fresca, vai desfiando, sem pressas, os fios
de uma vida: a de um oleiro por força da necessidade.
"A minha infância foi como a de quase toda a malta
daquele tempo. Nasci em 1924 e andei à escola e quando de lá saí fui podar
parreiras ou colher azeitona, trabalhos do campo. O meu irmão Manuel era oleiro
e aprendeu com o ti Zé Batata, o das bicicletas. Eu tinha para aí uns 13 anos
quando comecei a aprender a arte com o meu irmão, até ele ir para a tropa e quando ele foi para a vida militar, eu fui trabalhar com o ti Joaquim Maria da
Piedade (Batata).
Comecei a aprender num quintal pequeno que havia na travessa
Lourenço Dinis e do qual pagávamos uma renda e depois mudámos para a rua Júlio
Basso, onde está agora a Tipografia Nisense.
O meu irmão entretanto casou e voltei para a travessa
Lourenço Dinis e ia cozer a louça ao forno da Devesa do ti António Maria da
Piedade.
Casei e fui para a rua de Angola, montei ali a oficina.
Acabei por comprar um bocadito de terra e fiz lá o forno para não andar às
"atenças" dos outros. Mais tarde fiz o casão para a oficina."
João Sales foi oleiro durante mais de trinta anos, uma
actividade exercida por muita gente em Nisa. Fabricava
louça com uma função marcadamente utilitária, um trabalho que ocupava apenas
uma parte do ano.
"A olaria foi sempre uma actividade sazonal, desde Março a Outubro, que era quando a loiça dava alguma coisa. No Inverno, andávamos à azeitona e noutros serviços que apareciam.
"A olaria foi sempre uma actividade sazonal, desde Março a Outubro, que era quando a loiça dava alguma coisa. No Inverno, andávamos à azeitona e noutros serviços que apareciam.
Assim fui andando até que aos 45 anos fui operado a uma
úlcera. Fui mal operado, pois deixaram-me cá uma compressa e fui de urgência
para Lisboa. Lembro-me bem da partida aqui de Nisa, no dia de Natal à tardinha,
a caminho do Curry Cabral, onde fui operado no dia 21 de Janeiro de 1969.
Abriram-me três vezes e depois proibiram-me de fazer louça
por causa do esforço. Andei sempre com uma cinta elástica durante oito anos.
Montei então uma salsicharia na Vila, artesanal, na rua de
Angola. Matava um porquinho por semana e assim me ia governando. A carne era
vendida na pequena loja e tínhamos bons clientes e certos. A carne (enchidos)
era feita à moda cá de Nisa e tudo corria mais ou menos até que apareceu a
doença da minha mulher. Foi operada há 18 anos, mas apenas durou 6 meses.
Estávamos reformados os dois por invalidez, mas já não cheguei a receber nada
da pensão dela, cortaram-me, porque saiu uma lei."
Ti João Sales parece um homem de poucas palavras. A angústia
e a solidão, não lhe tolheram, todavia, o raciocínio e a memória. Gosta de
falar da vida, activa, de outros tempos, mas é sobre a olaria e os oleiros,
essa arte tradicional, que queremos ouvi-lo.
"Na década de 60 havia pelo menos, em Nisa, nove ou dez olarias. Só no Verão é que se fazia muita louça para vender nas estações dos caminhos de ferro. Os oleiros de Nisa eram também conhecidos por isso. Onde houvesse uma estação, lá estava alguém de Nisa a vender a louça. Eu cheguei a vender em Monfortinho, Castelo Branco, Sarnadas, Vila Velha, Ortiga, Belver, Fratel. Eu tinha uns fregueses na Fonte da Mealhada em Castelo de Vide que vendiam louça às pessoas que iam às Termas. Vendíamos também nas nossas feiras, em Nisa e no concelho, pois nas feiras fora de Nisa não podíamos vender, e vinham dois oleiros de Portalegre buscar peças para venderem nas feiras."
"Na década de 60 havia pelo menos, em Nisa, nove ou dez olarias. Só no Verão é que se fazia muita louça para vender nas estações dos caminhos de ferro. Os oleiros de Nisa eram também conhecidos por isso. Onde houvesse uma estação, lá estava alguém de Nisa a vender a louça. Eu cheguei a vender em Monfortinho, Castelo Branco, Sarnadas, Vila Velha, Ortiga, Belver, Fratel. Eu tinha uns fregueses na Fonte da Mealhada em Castelo de Vide que vendiam louça às pessoas que iam às Termas. Vendíamos também nas nossas feiras, em Nisa e no concelho, pois nas feiras fora de Nisa não podíamos vender, e vinham dois oleiros de Portalegre buscar peças para venderem nas feiras."
Sobre o funcionamento das oficinas de olaria e
particularmente da sua, João Sales explica como funcionavam.
Quem vê uma peça de barro, típica da olaria nisense, pode
imaginar o trabalho do oleiro, movendo a roda e dando formas a uma massa
disforme até ganhar a consistência de um objecto. O mesmo acontece com o
trabalho das pedradeiras, todo ele feito de minúcia e atenção. Mas, certamente,
muitos ignorarão a "outra parte", a menos visível desta arte: a do
arrancar do barro e das pedras e o seu transporte.
"O barro vinha das Estibas, o barro branco, e da Maria
Dias, do terreno do sr. José Vieira (Visconde). Não pagávamos nada pelo barro e
o senhor Visconde apenas recebia em troca algumas peças, principalmente barris
para as ceifas e alguns potes. Era preciso cavá-lo ao barro e para isso
levávamos alguns homens. O barro estava a mais de um metro de profundidade e
depois alugávamos uma camioneta de aluguer para o ir buscar. O cascalho branco
íamos buscá-lo à Serra de S. Miguel e a outros sítios. O cascalho tinha de ser
bem cozido para se poder partir mais facilmente."
O trabalho na oficina
"Na oficina era o mestre e era eu que ensinava a riscar
(fazer os desenhos). Os desenhos eram tirados da nossa cabeça. Na "força
maior", ou seja, quando havia muitos oleiros, o pedrado era "grosso".
Mais tarde o meu irmão é que começou com o pedrado mais fino, devido a uma
encomenda do Palácio Foz e do SNI (NR - Secretariado Nacional de Informação).
Essa louça ia para as exposições internacionais por
intermédio da Drª Margarida Ribeiro, uma grande estudiosa e defensora da olaria
de Nisa. Entretanto o meu irmão emigrou para a Alemanha e deixou-me os desenhos
e as encomendas para eu fazer."
O ti João Sales quase estremece quando lhe perguntamos se a
vida de oleiro era uma actividade bastante rentável.
"Trabalhei dos 13 aos 45 anos na arte e nunca tirei
grandes proventos, era só para me governar e irmos passando a vida. No Verão,
os barris para as estações eram o "forte". Era louça lisa para a
casa, potes lisos, cântaros com asa para as ceifas, enfusas para as milharadas
(meio cântaro), os barris para as carrêtas com duas asas e os barris
"espanhóis", com quatro asas, nas quais se podia enfiar um cordel
para ser transportado às costas."
As origens da olaria tradicional de Nisa estão por estudar e
definir. O nosso entrevistado não duvida de que é muito antiga e avança com
alguns elementos.
A olaria de Nisa é muito antiga, vem do tempo dos reis e é
uma tradição que temos". A nossa louça, o nosso barro, fazia a água fresca
e por isso era muito procurada, num tempo em que não havia frigoríficos."
Uma tradição que temos. Uma tradição para defender e
preservar, ou que, pelo contrário, correrá o risco de desaparecer. Oleiro
durante 30 anos, João Sales não tem dúvidas a esse respeito.
"Não vejo aprendiz nenhum. No meu tempo nunca tivemos
qualquer apoio das entidades, era até a indústria mais cara que cá tínhamos.
Era esse o "favor" que havia da Câmara. Fizeram um forno no Hospital
Velho, uma Escola, mas nada se aproveitou, foi só estragar dinheiro para nada.
Eu acho que esta decadência da olaria começou quando nos
exigiram que se pagasse aos aprendizes assim que entravam. Eu andei três anos
como aprendiz ( o aprendiz dava quatro anos ao mestre), não ganhava nada e só
no último ano é que os mestres davam uma gorjeta nos Domingos, aos aprendizes,
porque nós já fazíamos louça. Tenho muita pena disto, mas a olaria de Nisa vai
morrer."
Mário Mendes in "Fonte Nova"