Depois
de descrever Nisa a Nova e os “seus edifícios religiosos, com a história da sua
fundação e celebridade”, o Doutor Motta e Moura refere-se ao Calvário e
diz-nos:
“..há
mais a Igreja do Calvário, edificada na extremidade do Rossio, pela parte sul,
junto de outros edifícios que em tempos posteriores ali se construíram.
Não
há memória da época da sua construção, mas é de crer que fosse dos primeiros
templos da vila, não só pela forma e arquitectura da capela primitiva, que era
a que então se usava, mas porque era edifício de que não se prescindia naquelas
eras de tanta religião e piedade, para se celebrar anualmente a imitação
Augusta dos Passos e do martírio do Redentor.
Era
o antigo Calvário uma pequena capelinha, situada no lugar em que está hoje o
altar-mor da actual, com as mesmas três imagens e pequeno tabernáculo que tem
hoje.
Da
parte de fora, havia um belo átrio, murado, de bastante elevação, para o qual
se subia por uma larga escadaria, com seu portão no fundo.
Da
parte da esquerda, estava um púlpito de cantaria; e em frente um palio e docel
de pedra, sob o qual se colocava, no dia de Passos a imagem do crucificado.
Em
roda, havia canteiros e alegretes com muitas flores, plantas e arbustos que
exalavam delicioso aroma. Entre elas distinguia-se uma oliveira, um cipreste e
uma esponjeira, muitos craveiros, alfazemas, alecrim e jasmineiros. Era um
pequeno jardim, plantado para que a vista e o aroma que exalava atenuassem a
dolorosa impressão que o sacrifício do Homem-Deus produz em todos que o meditam
e contemplam, como aqueles em
que Sócrates e Platão instruíam seus discípulos nas sublimes
verdades da natureza, preparando os homens para receberem um dia a revelação
que Jesus Cristo lhes pregou.
Como
a capela era muito pequena e não havia espaço suficiente para o clero e irmãos,
ao menos, caberem nas funções que ali faziam, trataram de construir uma igreja
maior, onde todos os fiéis que concorressem, pudessem estar.
Começou
a obra em 1792, pelo risco da de Portalegre, dirigida por dois arquitectos que
dali vieram, um dos quais não a chegou a ver acabada, porque, desabando a
abóbada quando ia a fechar-se, como outrora a da Casa Capitular do Convento da
Batalha, que mestre Ouguet construíra, e, caindo ele envolto nos materiais,
ficou tão maltratado e ferido com a queda, que faleceu três dias depois.
É
redonda e circular a nova igreja, com um altar na frente, dentro da pequena
capela que ali estava, e se conserva, ornada com seus azulejos e separa por uma
grade de madeira, do resto do templo.
Da
parte direita está como um altar, onde se vê num féretro de preciosa madeira a
Imagem de Cristo na sepultura e, na frente, outro, onde ele repousa numa andor,
na posição em que o levaram pelas ruas de Jerusalém para o martírio.
Ao
redor e pendentes das paredes, estão em sete quadros desenhados os passos mais
notáveis da sua Paixão.
É
de abóbada e de bastante elevação e beleza. O pavimento é de tijolo, e sobe-se
para ele por uma formosa escada de cantaria, de cinco degraus, que tem da parte
de fora.
Tem
mais uma espaçosa sacristia, para comodidade do clero e dos irmãos, com seu
campanário e uma sineta que anuncia os ofícios divinos que ali se celebram; e
um púlpito de cantaria, onde se prega o último sermão do dia de Passos; e em
frente um altar, onde se arvora nesta solenidade o estandarte da cruz.”
NOTA
DA REDACÇÃO
O
ilustre “opositor às Cadeiras da Universidade de Coimbra”, que também não soube
evitar muitos desacatos ao património artístico de Nisa, e para alguns
contribuiu, assim nos descreve o nosso calvário, modificado pelos “ratões” do
século XVIII, “arquitectos” vindos de Portalegre, verdadeiros precursores dos
atentados às estéticas obras da vila, em cuja ementa figura, como “dernier
cri”, a destruição do Poço do Sítio.
Do
que se leu, fica-nos a ideia de um pequeno templo medieval, amorosamente
circundado por amoroso horto, perfume da Terra, em ascese puríssima para Deus.
Hoje,
vemos ali um cilindro gigante, encimado por espécie de pirâmide, em que se
salvam apenas as cantarias do pórtico e de uma janela; e ainda obra de cópia, o
que é sempre servil, mas muito em voga nestas paragens.
O
púlpito artístico, sempre contemplado com enternecido interesse, ainda
milagrosamente existe no exterior, salvo do camartelo vandálico, processo de
que usam os ignorantes para autopromoção à “imortalidade”.
Já
houve para aí um “projecto”...
No
dia (quando será?) em que as obras previstas comecem, é possível encontrar
testemunhos da primitiva construção, e reconstituir até, em desenho guiado, o
que foi o Calvário nas eras remotas.
Quanto
ao jardim, substituíram-no por aquele mostrengo de escadório, certamente paixão
dos assassinos da beleza.
Ah!
Mas “eles” pagam-nas todas! Acabaram de ver como um dos “arquitectos” de
Portalegre findou os seus dias, após a destruição do templo primitivo, que ele
como “arquitecto” ajudou com certeza a demolir.
Durante
a presidência do Sr. Dr. Jaime de Almeida, entregou a Câmara Municipal a um
técnico, a elaboração do projecto das obras a executar na parte nascente do
calvário, como consequência da abertura da Avenida Dom Dinis. É o que se espera
há muito. Bom seria entretanto que se fosse pensando em substituir a escadaria,
orientando-se o trabalho de modo a podermos ainda ver ali, pelo menos, um
canteiro artístico, onde brotassem flores, flores de alma em frente da Casa de
Deus.
"Correio de Nisa" nº13 - 2ª série - 29.5.1965