terça-feira, 5 de julho de 2016

CRUZ MALPIQUE: Chávenas de café quase amargo (1)

ENAMORADOS DE ROCOCÓ
Há vidas que vão, de um ao outro extremo -- desde que alvorecem até que se extinguem -- com ininterrupto esforço de vontade. São carros numa subida sem fim, carros que marcham em prise permanente. São vidas que não conhecem um minuto de descanso, fazendo pontaria sem tréguas a um alvo distante, do qual só tiram os olhos quando a morte lhos fecha.
As vidas dessa casta decorrem na clave da heroicidade. Não sabem o que é um desfalecimento. Em ambiente de facilidades, sentir-se-iam murchar. Apetecem, por natureza, os lances difíceis. A vitória que alcançassem, sem risco, tê-la-iam por vergonhosa.
Um Flaubert, por exemplo, no mundo dos escritores, abominava com facilidade. Se uma linha lhe saía de um jacto logo ele desconfiava da fartura... Nunca escreveu como quis – mas nunca renunciou à vontade de ver se poderia alcançar o seu ideal negaceante da prosa sem pontos mortos, da prosa flagrantemente ajustada à viva realidade. A sua pena correu-lhe sempre heróica sobre o papel -- ladeira, para ele, ultra-íngreme. A colocação de um adjectivo atormentava-o. "Para fazer uma boceta derribava uma floresta" -- disse Dumas, a respeito do autor de Madame Bovary . Condensar o estilo era a sua obsessão. Detestava o farfalho retórico. Remendos de púrpura, muito do agrado de primários, não os podia ver. A frase definitiva seria, para ele, aquele a que, declamada com voz natural, não alterasse o ritmo espontâneo da respiração.
A perfeição do estilo foi nele uma tortura, um milagre de vontade. Incontentadiço, como era, cortava constantemente, na ânsia febril de encontrar a frase justa. "Ah!, eu sei o que são os terrores do estilo! Sinto que o pescoço se me parte, de tanto suportar a cabeça inclinada. As repetições de palavras, os todos, os mas, os porques, os entretantos que tenho de eliminar...
Tarefa sem fim". O gosto da execução impecável era, em Flaubert, a mais cruciante das obsessões. Suava, amarfanhava-se, primeiro que se desse por satisfeito. Madame Bovary levou-lhe o melhor de seis anos a compor, e Salammbô quatro. Trabalhando sete horas por dia, escrevia vinte páginas num mês. Páginas houve que lhe levaram cinco dias!
Com vontade indomável lutou sempre, nunca soube o que foi uma vitória fácil em literatura.
Esta venceu-o, de fadiga. Ele, porém, ganhou a posteridade.
Muitos têm dito mal de Boileau, considerando que nunca foi um inspirado, e tudo conseguiu a golpes de vontade no mundo da forma literária. Não consta, no entanto, que Flaubert fizesse coro com esses maldizentes. Moralmente, não podia. Sentia-o seu irmão nas angústias da perfeição formal.
O estilo de Flaubert (um prodígio da vontade) é naturalmente simples. O sublime, o termo solene, rebuscado, para impressionar leitores ingénuos, são falhas de que o não podemos acusar. A simplicidade custou-lhe uma vida de canseiras. Daria duas, três vidas, para a alcançar. Só os beócios vivem enamorados do rococó.
APAGAR-SE

Santa Margarida Maria de Alacoque, escrevendo, em 1686, a um seu irmão, dizia: -- Tenho apenas um desejo: amar a Deus, esquecer-me e apagar-me".
Como este programa contrasta com o de boa maioria de humanas criaturas! O desejo destas -- o seu ardente desejo -- é precisamente o de se fazerem notadas, o de amarrem as simples temporalidades, o de fazerem constar que gens sunt, et cavalgare sabent. Apagar-se, esquecer-se, desaparecer na voragem do mundo, fugir do tumulto, seria, para esses tais, o suplício dos suplício. A exibição é sua constante preocupação. Dela, nela, por ela, e para ela vivem.
MUDAR

Quem de um campo (político, religioso, estético...) para outro muda, fica sempre na tristíssima contingência de ser furiosamente atacado por aqueles a quem abandonou, sem deixar de merecer suspeitas àqueles para quem se passou.
Não vejo, porém, razão para censuras, se a mudança foi inspirada por sinceros motivos. Não se vê que, tendo um homem assentado praça no sector A, permaneça para todo o sempre, no referido sector. Se razões de consciência o persuadirem a mudar -- não vejo que haja incoerência na mudança. Incoerência existiria, se teimasse em ficar onde primeiro sentou praça -- apenas para evitar a crítica. A imutabilidade absoluta é privilégio dos mortos.
Não se acobertem, porém, como esta prosa, os que de um para o outro campo desertam, apenas em função dos pruridos de estômago e vísceras adjacentes. A nossa prosa mira muito mais alto.
Cruz Malpique