Partiu recentemente do nosso convívio, esta figura veneranda
da cidade de Portalegre, de Nisa – terra onde nasceu há quase 100 anos – e do Norte
Alentejano.
O texto que se publica é uma homenagem singela a um “homem
do século” e cidadão do mundo, figura simples, trato afável e conversador nato.
Com ele, o tempo passava veloz e ficava sempre a sensação de termos aprendido
mais alguma coisa.
Reconhecido pela sua amizade, deixo expresso à família,
sentidas condolências e a certeza de que Curado da Silva à imagem de Pablo
Neruda poderia dizer: Confesso que vivi!
Mário Mendes
OS CASAMENTOS DE OUTRORA NA NOSSA TERRA (*)
- Curado da Silva
(...) Vejamos como eu vi na minha infância e alguns anos
depois, os casamentos na nossa terra, porventura muito diferentes dos de hoje.
Os convites e as prendas
Aprazada a data do casamento, faziam-se os habituais
convites, sempre na ordem de algumas dezenas nas classes mais pobres e de
algumas centenas nas mais abastadas.
Muito curioso o facto de, ao contrário do que acontecia em
qualquer outra parte, as prendas oferecidas aos noivos não serem constituídas
por quaisquer objectos, mas antes por cereais, trigo ou centeio, um alqueire (15 litros ) ou pelo seu
valor em dinheiro, prendas a que se dava o nome de "serviço".
O local da boda (Quintal da Festa)
Dois os locais da boda: para os convidados em geral, um
quintal amplo, devidamente atapetado com fetos ou juncos, para evitar o pó. A
este quintal se dava o nome de "Quintal da Festa" no decorrer dos
dias da boda. Neste quintal se abatia o gado, cabritos e borregos, se cozinhava
em grande caçarolas de barro, assentes sobre pedras colocadas paralelamente a
fazer de fornalha, junto de uma parede, quintal em que também se comia e
confraternizava.
As mesas, sempre muito longas, eram por vezes formadas por
escadas de mão assentes nos extremos sobre grandes pedras ou madeiros, com
tábuas por cima, sobre as quais se estendiam as toalhas.
O outro local da boda, o da chamada "mesa grave",
era em casa dos pais de um dos noivos ou já na futura residência dos mesmos.
Nesta mesa apenas tinham assento os nubentes, seus pais e irmãos, os padrinhos
e alguns parentes ou pessoas mais íntimas.
A ementa
Muito curiosa e
original ela era. Na véspera do casamento, ao almoço, batatas ou feijão frade,
guisados, e ao jantar grão de bico ou feijão de cor guisados também.
No dia do casamento ao almoço, as conhecidas sopas de
sarapatel, manjar feito com o fígado, bofe, coração e sangue dos cabritos e
borregos.
Ao jantar, as chamadas sopas de afogado, prato a que também
se dá o nome de ensopado mas, neste caso, não com batatas mas antes com grandes
sopas de pão sobre as quais se deita o caldo e a carne.
Todas as referidas refeições eram servidas no quintal da
festa em grandes bacias de louça colocadas sobre as mesa, distanciadas umas das
outras de forma a que, de cada uma delas, pudessem comer grupos de quatro a
seis pessoas.
Uma pessoa se encarregava de servir o vinho, em volta da
mesa, bebendo todos pelo mesmo copo. Também muito curioso o facto de os
convidados, os do quintal da festa, terem de levar o respectivo talher, aliás
uma colher apenas. Na chamada "mesa grave" outros pratos podiam ser
servidos para além dos atrás enunciados.
Quanto a bolos, doces, e algumas bebidas, ausentes do
quintal da festa, eram servidos na mesa grave, mas em geral antes e depois do
casamento em casa dos pais dos noivos.
As vestes dos noivos
O noivo envergava um fato normal que apenas poderia ser
diferente nos casos de se tratar de um trabalhador do campo ou de um dos
chamados artistas, isto é, de qualquer outra profissão que não a do campo.
Quanto às noivas, não envergavam elas o tradicional vestido
branco nem o véu com flor de laranjeira, o que aliás não significava que fossem
menos puras que a de outras terras, ostentando tais símbolos de virgindade.
O traje de então era constituído por saia rodada ou
plissada, blusa (ou roupinha), lenço estampado ao pescoço e um grande xaile não
preto, com grossas e compridas franjas. Em tempos mais recuados, porém, as
noivas apresentavam-se totalmente de preto, com saia, blusa e mantilha.
A cama dos noivos
Uma grande excentricidade neste aspecto. Na véspera do
casamento a cama era feita com todos os lençóis, colchas e cobertores do
enxoval da noiva e exposta para quantos (ou melhor, para quantas...) a
quisessem apreciar. Duas pessoas, que podiam ser a noiva e uma das madrinhas,
se encarregavam, uma à cabeceira e a outra aos pés da cama, de mostrar e contar
todas as peças que a compunham.
Mas ainda outra excentricidade, esta bastante insólita, a
registar neste capítulo: na primeira noite os noivos dormiam no chão, em
improvisada cama. Isto porque a primeira ainda se encontrava feita, como na
véspera, com todos os lençóis, cobertores e colchas do enxoval da noiva. A
propósito disto não fujo à tentação de narrar um pequeno episódio passado com
um casal conhecido e amigo e que os próprios com muita graça contavam.
Na noite do casamento estavam dormindo sossegadamente (no
chão, claro...) quando, de súbito, se desprende da parece um grande tacho
metálico, o qual, caindo em cima da cabeça do noivo, lhe provocou um grande
galo na testa. No dia seguinte, (era de esperar...) tiveram os noivos grande
dificuldade em fazer-se acreditar sobre o que na realidade se havia passado,
sendo por isso alvos, por parte de alguns convidados mais galhofeiros, de
inofensivos mas espirituosos comentários.
O destino do enxoval da noiva
Ao contrário do que acontecia em qualquer outro ponto do
país, as noivas de Nisa desfaziam-se de grande parte do enxoval após o
casamento. Era adquirido, por futuras candidatas a noivas, as quais, por sua
vez, chegada a sua altura, procediam de igual modo. Assim, muitas das peças
vistas em determinado casamento, já haviam sido vistas em casamentos
anteriores.
Não se julgue, porém, que a alienação de tais bens era feita
de ânimo leve e portanto sem qualquer finalidade. O dinheiro apurado, somado
com o das prendas, era de imediato investido na construção da sua casa,
importância que, aliás, por vezes apenas dava para levantar as quatro paredes e
pôr-lhes o telhado em cima.
Mas era um bom princípio. O resto, com muitos sacrifícios,
viria (e vinha mesmo) mais tarde.
Como seria diferente o problema da habitação em Portugal se
todos os jovens portugueses tivessem igual espírito de sacrifício.
Mal os noivos adormecem,
São forçados a acordar
Por um grupo de amigos
Que à porta lhes vai cantar
* O espaço temporal deste artigo de Curado da Silva,
refere-se à década de 20 do século passado.
O Descante
Entende-se, na terminologia popular de Nisa, que o descante é um canto de homenagem aos noivos, de louvor ao casamento e de felicitações para a vida futura.
Entende-se, na terminologia popular de Nisa, que o descante é um canto de homenagem aos noivos, de louvor ao casamento e de felicitações para a vida futura.
É um costume muito antigo, em Nisa, diríamos, mesmo original
e a ele faz referência o Dr. Motta e Moura, na sua Memória de Nisa. As quadras
que seguem são da autoria de Maria da Graça Pinto e foram cantadas num
casamento (descante) ocorrido nos anos 60, do século passado.
O Descante (num casamento dos anos 60) *
Adeus Maria Isabel
Parabéns te venho dar
Deus queira que teu marido
Sempre te saiba estimar
Isabel, hoje já és noiva
Já chegou hoje o teu dia
Deus queira que no teu lar
Sempre se encontre alegria
O teu vestido de noiva
Tão branquinho como a prata!
Já puseste a mão em cruz
Só por morte se desata.
Isabel, o teu marido
Dizem que é boa pessoa
Leva-te daqui p´ra fora
Vão viver para Lisboa.
Cá deixas os teus paizinhos
A estranhar a companhia
Vais nova vida tomar
Deus te dê sempre alegria
Tens sido boa menina
Com boa disposição;
António é teu marido
Já lhe deste a tua mão.
Tanta gente a acompanhar-te,
A comer, com apetite
Tudo alegre e satisfeito
Isto assim é que é bonito.
Adeus António da Cruz
Deus te dê felicidade;
Isabel é tua mulher,
Ama-te com lealdade.
António, repara bem
No que te estou a dizer
Faz um lindo casamento,
Estima a tua mulher.
António, estás no teu dia,
Um dia tão desejado
Segue sempre bom caminho,
Que já és um homem casado.
António, já hoje é tua
A mulher que mais amavas;
Vai correndo p´ra seis anos
Que já tu a namoravas.
Deus queira que o bem-querer
Aumente cada vez mais;
Um casamento bonito
É alegria dos pais.
Tens uma casa tão linda,
Com tanta coisa bonita
Deus te dê saúde e sorte
E muitos anos de vida.
Vim aqui incomodar-vos,
Desculpem esta maçada.
Se não quiserem dar vinho,
Dêem uma cigarrada.
Acabados o descante,
Vai-se o noivo levantar
Pra copinhos de licor
E bolos a todos dar.
* tá Mari Pinto (poeta popular, falecida)
Mário Mendes - À Flor da Pele - Alto Alentejo - 8/11/2011