Já lá vão muitos anos, mesmo muitos, quando eu
sonhava em ver o comboio pela primeira vez.
Foi num dia de Verão de 1962, quando a carroça azul
e a égua do senhor Manuel Badanéla serviu de táxi, para me levar à linha do
Leste, à estação de Vale do Peso.
Na aurora da manhã daquele dia, as ferraduras da
“égua vermelha” ecoavam no asfalto a um ritmo acelerado, para chegarmos a tempo
à estação e para eu apanhar o comboio. No caminho tive ainda o privilégio de
ver Alpalhão pela primeira vez.
A minha bagagem era uma mala de cartão, comprada na
loja do senhor Isaac Araújo, que eu ainda hoje guardo preciosamente, uma bolsa
de farrapos com um quarto de pão cortado ás fatias e uma lata de cera que
servia de marmita, guarnecida com um ovo frito e um bocado de chouriço, às
rodelas, um barril de barro pedrado, cheio de água, onde podíamos ler:
“Recordação de Nisa”, comprado no Ti Batata da Devesa. O barril não durou muito
tempo, porque o comboio fez uma travagem, partindo-o.
O meu destino era a Grande Lisboa, aquela terra que
soava em todos os peitos das crianças, deixando para trás a minha mãe e as
minhas irmãs que me acenavam, pelo meio da fumaceira que o comboio largava, até
me perderem de vista, chorando, como se eu fosse para uma viagem sem regresso.
À medida que o comboio avançava, eu ia descobrindo
novos horizontes e paisagens, até muito longe, o comboio parou apitando três
vezes, fazendo-me logo lembrar do filme com o Gary Cooper: tratava-se da
travessia do Tejo, com a célebre ponte do “Corta-Cabeças”, pois foi assim
baptizada.
Eu ia sempre à janela, pois não tinha fome, entusiasmado
por tudo o que via, o meu rumo era a capital e sentia-me feliz por ir ver os
prédios altos e os automóveis nas avenidas.
Ao chegar a Santa Apolónia lá estava o meu irmão á
minha espera, que mal me conhecia porque eu estava todo “infarrusquéde” pelo fumo
e o vapor produzido pelo comboio.
Fui morar para uma pensão, no Campo Pequeno, o meu
salário nem sequer dava para pagar a mensalidade e eu tinha que aviar recados
para poder recompensar a dona da pensão.
Nas horas vagas tinha o hábito de ir para a entrada
da Feira Popular, ali perto, só para ver as luzes a apagar e a acender,
fazendo-me lembrar o Circo “Prin et Fréres” que meses antes tinha visto na
tapada municipal da Devesa.
Num desses dias, para não atravessar a Avenida da
República, que se tornava perigosa com o trânsito, passei para o outro lado
pelo túnel do Metro, e foi quando vi o chão juncado de milhares de panfletos.
Comecei a apanhar, a apanhar... até que fui abordado por um homem que me levou preso
por um braço para a esquadra da polícia do Campo Grande, a algumas centenas de
metros dali. Lá, encontrava-se um polícia bastante gordo que escrevia sobre a
secretária, não dando atenção à nossa chegada e sem mais nem menos o homem à
civil perguntou-me: “quem é que te deu os papéis para tu distribuíres?”.
Respondi-lhe que ninguém me tinha dado papéis e
disse-lhe que na minha terra quando passava a caravana da Volta a Portugal, eu
era dos “cachopinhos” que apanhava mais reclames. E na festa do Mártir Santo lá
na minha rua também apanhava muitas canas dos foguetes.
Ali reparei que o polícia gordo deu uma gargalhada,
mas o homem à civil era rude e tinha cara de poucos amigos. Falou-me brusco e
com arrogância, perguntando-me se eu era açoriano e apontando-me o seu dedo
indicador para um dos papéis:
- Que emblema é este?
Eu, com a minha ignorância, respondi: isto é uma
foice, igual à da minha mãe, quando corta o milho lá em Nisa e isto é um
martelo, que o meu mestre “Padá” utiliza para pregar pregos.
- E o que quer dizer estas iniciais?, apontando-me
para o papel onde estava PCP.
Como estava dentro de uma esquadra da polícia,
respondi, inocentemente: Polícia de Censura Pública. Aí não me enganei muito
porque estava frente a um PIDE, cujas iniciais eu já conhecia. Era a Polícia
Internacional e Defesa do Estado, mais tarde DGS, Direcção Geral de Segurança.
O homem viu que eu era uma criança inocente e sem
conhecimentos da matéria e disse-me: “Mósca-te daqui p´ra fora e não apanhes
mais papéis no Metro!”.
Ainda fiz um gesto para trazer aquela papelada
toda, mas aí o homem ficou furioso e deu-me um atazanão e um aviso: “Vê lá se
queres ir parar ao “calhabouço!”
Saí da esquadra a bater com os calcanhares no
cu..., percorrendo a Rua de Entrecampos sem olhar para trás e sem saber quem
espalhou os prospectos que diziam: “Juventude Universitária Comunista”. Foi o
que consegui ler, porque o homem de má carácter não me deixou concentrar.
Vinte e tal anos depois deu-se o 25 de Abril, onde
os emblemas ou logos dos papéis do Metro vieram-me à memória, pois figuravam em
todas as paredes e monumentos de vilas e cidades.
Agora, 45 anos depois, apercebi-me que as linhas
paralelas do comboio que nos levam ao destino, podem ser comparadas com os
partidos políticos, pois, por muito que se prolonguem nunca se encontram. Foi
assim que eu aprendi na escola e é o que nós vimos no dia a dia, da boca destes
“prometedores” que só querem o poleiro, apregoando o mel para depois venderem o
vinagre.
Eu ainda tinha mais coisas para contar, talvez fique
para a próxima oportunidade, confiante de que Portugal não tem petróleo, mas
tem ideias, esperando que o comboio da esperança chegue, um dia, ao seu
destino.
Deixo-vos com um forte abraço para todos.
António Conixa in "Jornal de Nisa" -
Out.2007