segunda-feira, 6 de junho de 2016

CANTINHO DO EMIGRANTE: O comboio da esperança

 Já lá vão muitos anos, mesmo muitos, quando eu sonhava em ver o comboio pela primeira vez.
Foi num dia de Verão de 1962, quando a carroça azul e a égua do senhor Manuel Badanéla serviu de táxi, para me levar à linha do Leste, à estação de Vale do Peso.
Na aurora da manhã daquele dia, as ferraduras da “égua vermelha” ecoavam no asfalto a um ritmo acelerado, para chegarmos a tempo à estação e para eu apanhar o comboio. No caminho tive ainda o privilégio de ver Alpalhão pela primeira vez.
A minha bagagem era uma mala de cartão, comprada na loja do senhor Isaac Araújo, que eu ainda hoje guardo preciosamente, uma bolsa de farrapos com um quarto de pão cortado ás fatias e uma lata de cera que servia de marmita, guarnecida com um ovo frito e um bocado de chouriço, às rodelas, um barril de barro pedrado, cheio de água, onde podíamos ler: “Recordação de Nisa”, comprado no Ti Batata da Devesa. O barril não durou muito tempo, porque o comboio fez uma travagem, partindo-o.
O meu destino era a Grande Lisboa, aquela terra que soava em todos os peitos das crianças, deixando para trás a minha mãe e as minhas irmãs que me acenavam, pelo meio da fumaceira que o comboio largava, até me perderem de vista, chorando, como se eu fosse para uma viagem sem regresso.
À medida que o comboio avançava, eu ia descobrindo novos horizontes e paisagens, até muito longe, o comboio parou apitando três vezes, fazendo-me logo lembrar do filme com o Gary Cooper: tratava-se da travessia do Tejo, com a célebre ponte do “Corta-Cabeças”, pois foi assim baptizada.
Eu ia sempre à janela, pois não tinha fome, entusiasmado por tudo o que via, o meu rumo era a capital e sentia-me feliz por ir ver os prédios altos e os automóveis nas avenidas.
Ao chegar a Santa Apolónia lá estava o meu irmão á minha espera, que mal me conhecia porque eu estava todo “infarrusquéde” pelo fumo e o vapor produzido pelo comboio.
Fui morar para uma pensão, no Campo Pequeno, o meu salário nem sequer dava para pagar a mensalidade e eu tinha que aviar recados para poder recompensar a dona da pensão.
Nas horas vagas tinha o hábito de ir para a entrada da Feira Popular, ali perto, só para ver as luzes a apagar e a acender, fazendo-me lembrar o Circo “Prin et Fréres” que meses antes tinha visto na tapada municipal da Devesa.
Num desses dias, para não atravessar a Avenida da República, que se tornava perigosa com o trânsito, passei para o outro lado pelo túnel do Metro, e foi quando vi o chão juncado de milhares de panfletos. Comecei a apanhar, a apanhar... até que fui abordado por um homem que me levou preso por um braço para a esquadra da polícia do Campo Grande, a algumas centenas de metros dali. Lá, encontrava-se um polícia bastante gordo que escrevia sobre a secretária, não dando atenção à nossa chegada e sem mais nem menos o homem à civil perguntou-me: “quem é que te deu os papéis para tu distribuíres?”.
Respondi-lhe que ninguém me tinha dado papéis e disse-lhe que na minha terra quando passava a caravana da Volta a Portugal, eu era dos “cachopinhos” que apanhava mais reclames. E na festa do Mártir Santo lá na minha rua também apanhava muitas canas dos foguetes.
Ali reparei que o polícia gordo deu uma gargalhada, mas o homem à civil era rude e tinha cara de poucos amigos. Falou-me brusco e com arrogância, perguntando-me se eu era açoriano e apontando-me o seu dedo indicador para um dos papéis:
- Que emblema é este?
Eu, com a minha ignorância, respondi: isto é uma foice, igual à da minha mãe, quando corta o milho lá em Nisa e isto é um martelo, que o meu mestre “Padá” utiliza para pregar pregos.
- E o que quer dizer estas iniciais?, apontando-me para o papel onde estava PCP.
Como estava dentro de uma esquadra da polícia, respondi, inocentemente: Polícia de Censura Pública. Aí não me enganei muito porque estava frente a um PIDE, cujas iniciais eu já conhecia. Era a Polícia Internacional e Defesa do Estado, mais tarde DGS, Direcção Geral de Segurança.
O homem viu que eu era uma criança inocente e sem conhecimentos da matéria e disse-me: “Mósca-te daqui p´ra fora e não apanhes mais papéis no Metro!”.
Ainda fiz um gesto para trazer aquela papelada toda, mas aí o homem ficou furioso e deu-me um atazanão e um aviso: “Vê lá se queres ir parar ao “calhabouço!”
Saí da esquadra a bater com os calcanhares no cu..., percorrendo a Rua de Entrecampos sem olhar para trás e sem saber quem espalhou os prospectos que diziam: “Juventude Universitária Comunista”. Foi o que consegui ler, porque o homem de má carácter não me deixou concentrar.
Vinte e tal anos depois deu-se o 25 de Abril, onde os emblemas ou logos dos papéis do Metro vieram-me à memória, pois figuravam em todas as paredes e monumentos de vilas e cidades.
Agora, 45 anos depois, apercebi-me que as linhas paralelas do comboio que nos levam ao destino, podem ser comparadas com os partidos políticos, pois, por muito que se prolonguem nunca se encontram. Foi assim que eu aprendi na escola e é o que nós vimos no dia a dia, da boca destes “prometedores” que só querem o poleiro, apregoando o mel para depois venderem o vinagre.
Eu ainda tinha mais coisas para contar, talvez fique para a próxima oportunidade, confiante de que Portugal não tem petróleo, mas tem ideias, esperando que o comboio da esperança chegue, um dia, ao seu destino.
Deixo-vos com um forte abraço para todos.
António Conixa in "Jornal de Nisa" - Out.2007