José Lopes Valente
Miguéns, o ti Vara, faleceu no passado dia 2 de Abril, numa instituição de Vila
Velha de Ródão, onde se encontrava desde há algum tempo, após ter sido
acometido de grave doença.
Morreu em Abril, o
cidadão, o autarca, o militante comunista que mais fez pela sua terra e
freguesia, S. Simão – Pé da Serra, após o 25 de Abril.
O povo da sua terra e
do concelho de Nisa, que amou como poucos, tributou-lhe uma sentida e vibrante
homenagem de despedida no dia seguinte, incorporando-se no seu funeral centenas
e centenas de pessoas, amigos, autarcas, cidadãos anónimos de todo o concelho.
O seu percurso como
cidadão, resistente e autarca foi devidamente assinalado pelo actual presidente
da Junta de Freguesia de S. Simão, José Hilário, que destacou a dedicação, o
dinamismo e o contributo de José Lopes Miguéns para o desenvolvimento da
freguesia e na implantação de infra-estruturas básicas como a água, o
saneamento básico e as vias de comunicação.
É este o “homem de
Abril” que aqui evocamos, hoje, tendo como referência uma entrevista feita num
fim de tarde de Verão, já lá vão uns anitos.
José Lopes Valente
Miguéns, o Ti Vara, tinha 81 anos e um percurso de mais de 25 anos como
autarca.
O Ti Vara, foi uma
figura emblemática do Pé da Serra e de todo o extremo norte do concelho de
Nisa, conversador nato, alegre, bem disposto, sempre disponível para trazer ao
presente, histórias, relatos, memórias, que tanto podiam falar dos tempos
difíceis da emigração e do salazarismo, como da "fama vermelha" do Pé
da Serra.
Uma "fama"
que, segundo alguns habitantes, sem razão de ser, apenas justificada pelo
desejo de aprender de muitos jovens do seu tempo e pelo ostracismo a que a
freguesia era votada pelos "senhores de Nisa".
Guardador de rebanhos
José Miguéns andou na
escola no Pé da Serra onde fez a 4ª classe, tendo a D. Georgete como
professora. Acabada a escola tomou o rumo de outros companheiros seus, fez-se à
vida, que esta era dura e de poucos proventos. Foi para Cabeço de Vide, servir
como empregado de balcão (caixeiro) numa mercearia e taberna. Esteve lá dois
anos, em casa do senhor José Marcelino Malheiro, após o que voltou para o Pé da
Serra. Aqui, aguardava-o o trabalho mais comum para uma criança feita homem em
três tempos: a de guardador de vacas em Montes de Matos, função que desempenhou
durante um ano. Na aldeia foi guardador de rebanhos, borregos, porcos, até
completar a maioridade.
Era a vida de quase
toda a gente nesse tempo e como se ganhava pouco, resolveu alistar-se como
voluntário e assentar praça na vida militar, em Tomar. Andou na tropa
um ano e alguns meses. Regressou ao ponto de partida, a sua aldeia encostada à
serra de S. Miguel, onde continuou a trabalhar por conta de outrem, a cortar
azinheiras e a fazer carvão.
Uma vida dura, a de
carvoeiro, conforme teve ocasião de nos explicar.
"No Pé da Serra
havia três ou quatro negociantes de carvão. Nós derrubávamos as azinheiras,
cortávamos as pernadas e fazíamos os fornos, que eram feitos com terra. Depois
eram desaterrados e tirávamos o carvão. Era um serviço de grande dureza. Nessa
altura já estava casado. O carvão saía daqui com destino a vários sítios desde
o Entroncamento, Lisboa, Castelo Branco e outras localidades. Havia muita
procura desse material. Este trabalho era sazonal e no Inverno ia trabalhar
para o lagar. Andei assim durante vários anos, até que meti na cabeça ir para
França."
A "salto"
rumo a França
Puxando pela memória, o
"Ti Vara" conta as aventuras e desventuras da ida para a França, a
salto.
"Demorámos 18 dias
a chegar. Fomos abandonados pelo passador, durante três ou quatro dias, sem saber
o que fazer, escondidos num barracão, a poucos quilómetros da fronteira
espanhola, próximo de Medelim, mas, felizmente, não desesperámos e às tantas lá
apareceu o homem com um camião que nos transportou Espanha adentro. No camião
iam cento e tal pessoas, de várias terras do país, parecíamos sardinha em lata. Durante a
viagem que demorou mais de 12 horas, nunca parámos nem para urinar, tínhamos
que o fazer para dentro de um bidon. Quando chegámos a Hendaia, já na França,
deram-nos um bilhete de comboio para irmos até Paris e que cada um se
desenrascasse. Em Paris, numa grande cidade e sem perceber uma palavra de
francês, lá consegui alugar um táxi que me foi pôr e ao outro camarada à região
de Dijon, no departamento 21, onde havia malta do Pé da Serra. Um dos
conterrâneos emprestou-me o dinheiro para pagar o táxi e o primeiro ordenado
que recebi em França foi para lhe pagar a ele. Era assim que as coisas
funcionavam. Lembro-me que paguei sete contos e quinhentos ao passador, o que
era muito dinheiro naquela altura.
Comecei a trabalhar na
agricultura, a tratar de gado. Depois fui para a construção civil como servente
de pedreiro. Ali aprendi alguma coisa e comecei a desenrascar-me nalguns
trabalhos nesta profissão".
Da França para a
Alemanha
Estava dado o primeiro
passo rumo à independência económica e a melhores condições de vida. Perdidas
as reticências iniciais, José Miguéns ruma até à Alemanha.
"Na França não se
ganhava mal, mas na Alemanha o ordenado e as condições ainda eram melhores.
Arranjei um contrato de trabalho e fui para Colónia. As principais obras onde
trabalhei eram as do Metropolitano. As dificuldades eram a língua, mas havia muitos
portugueses e nós, uns com os outros, íamos desenrascando. Estive três anos na
Alemanha, e gostava de trabalhar naquele país e depois tive de decidir porque a
minha filha tinha saído professora e havia que escolher entre a Alemanha e
Portugal, e assim regressei ao Pé da Serra, retomando a vida de pedreiro por
conta própria.”
As ideias políticas
Próxima do Tejo e da
raia, o Pé da Serra sempre foi uma terra de emigrantes e de contactos com
outros povos, nomeadamente no período da guerra civil espanhola (1936-1939).
Denominados como “montezinhos”, os seus habitantes não caíram nas boas graças
do poder municipal de Nisa e daí a haver alguma discriminação e ostracização
política foi um pequeno passo.
José Miguéns rejeita a
ideia de a freguesia ter sido um centro de ideias revolucionárias, antes do 25
de Abril.
"Nós aqui não
tínhamos, propriamente, ideias políticas. O que havia era uma malta que gostava
de ler, de aprender, de se informar e depois começávamos a perguntar. Por outro
lado, sentíamos que havia discriminação da Câmara de Nisa para com a freguesia
de S. Simão. Até ao 25 de Abril, tínhamos uma estrada miserável, cheia de
buracos, em terra batida. Não tínhamos praticamente mais nada e não se faziam
aqui obras. Hoje, felizmente, é bem diferente..."
"O grande empurrão
foi, sem dúvida, a campanha das eleições para a presidência do general Humberto
Delgado. Aqui no Pé da Serra, o Humberto Delgado tinha muito apoio e estou
convencido que perdemos as eleições, tanto aqui, como no país, porque houve
"marosca". Eu andei a colar os cartazes da campanha, tinha montes
deles em casa. Quando
foi no dia das eleições, os elementos da mesa eleitoral, que vieram de Nisa não
me deixaram entrar para fazer o meu trabalho de delegado. Eu sentei-me numa
janela em frente à Junta e ia descarregando num papel, todas as pessoas que iam
votar. Pelas minhas contas a vitória não falhava, mas as contas eram feitas de
outra maneira...
Eu ia a Nisa buscar os
cartazes que me dava o Dr. Chambel, um dos maiores democratas que Nisa tinha e
foi tão injustamente esquecido, e um dia ele disse-me: " Ainda não foi
desta vez que ganhámos, mas esteve quase. Para a próxima não falha, pois isto
não pode assim continuar. Se todos fossem como tu, outro galo cantaria".
Havia alguma
consciência política, de esquerda e em 1973, na Alemanha fui votar com a minha
mulher na CDE, por correspondência, ao consulado de Dusseldorf.
Na Alemanha e antes do
25 de Abril estava já organizado, reuníamos na sede do DKP (Partido Comunista
Alemão) e eu fazia a distribuição nos fins-de-semana ou após o trabalho, de
exemplares do "Avante" aos nossos compatriotas."
O regresso e a eleição
como autarca
Após o regresso da
Alemanha, já com o "bichinho da política" e a liberdade alcançada,
foi sem surpresa que José Miguéns se viu no papel de presidente da Junta de
Freguesia.
"Quando vim para
Portugal, foi engraçado porque um dos meus encarregados, alemão, dizia-me:
"o que vais tu fazer para Portugal se já lá não há dinheiro, pois deram
cabo dos bancos?", e eu respondi-lhe que sempre havia de haver alguma
coisa para comer e repartir com a família.
Fui eleito presidente
da Junta e estive 24 anos como presidente. As obras de que mais me orgulho?
Fico muito contente com construção e instalação do Centro de Dia e das pessoas
idosas terem um local para estarem, serem atendidas, conviver. Estou contente
de quase todas as ruas estarem calcetadas, talvez pudesse ter feito mais alguma
coisa, mas daquilo que foi feito sinto-me orgulhoso.
Confesso que tinha
grandes problemas em deixar a Junta pois receava que quem viesse não tivesse as
mesmas ideias e a mesma dedicação em prol da freguesia, mas felizmente a CDU
arranjou uma pessoa que dá todas as garantias e de quem tenho o maior regozijo
de ver à frente da Junta."
As “Escadinhas do Ti
Vara”
Ainda em vida, que é
quando as homenagens devem ser feitas, José Lopes Valente Miguéns foi alvo de
significativa homenagem. Uma rua do Pé da Serra passou a ter o seu nome. Lá
está gravada no granito, a designação “Escadinhas do Ti Vara”, ali a dois
passos da sede da Junta.
Homenagem singela que
fica a perpetuar pelos tempos fora, o nome de um pé-de-serrense que se dedicou
de alma e coração a trabalhar e a engrandecer a sua freguesia.
"Fiquei muito
contente e com grande orgulho porque representou o reconhecimento de ter lutado
por uma causa e também pela minha terra. Foi uma bela iniciativa do Dr. José
Manuel Basso, a qual agradeço bastante, bem como a todas as pessoas, de todas
as forças políticas que vieram nesse dia ao Pé da Serra."
O futuro da freguesia
Na altura, o futuro das
freguesias, enquanto órgãos de poder local mais próximos das populações não
estava, como hoje está, a ser posto em causa.
José Lopes Miguéns
falava da “sua” freguesia com carinho e enlevo. Recordou a luta travada para
vencer inúmeras barreiras burocráticas que impediam a concretização de obras
essenciais, não obstante, deixou uma mensagem de esperança
"S. Simão como
freguesia não se pode queixar muito. Têm sido feitas obras nos últimos anos,
mas nem todos os problemas estão resolvidos. O principal, para mim, é a falta
da qualidade da água. Agora tem havido em quantidade. Outro
problema que é preciso resolver com urgência é o da rede viária. A freguesia
tem, neste momento, as piores estradas e nem falo na Estrada da Vinagra que é,
de facto, uma vergonha. Falta-nos um lar para os idosos e muitas das pessoas
que podiam vir de Lisboa e de outros sítios para o Pé da Serra, acabam por ir
para outras localidades. Com um lar muitas das pessoas reformadas e idosos
regressariam à terra. Lanço um apelo para que haja mais vontade para resolver
este problema."
Lembrar e homenagear o
Dr. Chambel
A nossa conversa estava
a chegar ao fim e o ti Vara, detentor de boa memória, não esqueceu alguns
democratas que pereceram na voragem do tempo e do esquecimento, por parte da
comunidade.
"O Dr. Chambel era
um grande lutador pela Democracia, pelos direitos humanos e sofreu muito com
isso. Lutou praticamente sozinho no nosso concelho para mudar o rumo às coisas,
para que tivéssemos um governo eleito pelo povo, liberdade de opinião e
reunião, por melhores condições de vida para os portugueses. Depois do 25 de
Abril ninguém se lembrou dele, deixaram que a sua luta e o seu exemplo não
fosse lembrado e devidamente homenageado. É preciso libertar a memória deste
Homem como grande lutador pela democracia que o concelho de Nisa teve. É um
acto de justiça."
A esperança não morre
José Lopes Valente
Miguéns, o Ti Vara, partiu, há dias, do nosso convívio. Não chegou a ver nascer
o Lar da freguesia. É pouco provável que alguma vez ele seja erguido.
A estrada da Vinagra
deixou, entretanto, de ser uma “vergonha”. Está transitável, o Pé da Serra tem
já a sua ETAR, o lagar fechou e está ao abandono, a freguesia e o concelho têm
cada vez menos habitantes.
As políticas
centralizadoras e de abandono do interior, condenaram a nossa região a uma
morte anunciada, não tão lenta como seria espectável. O deserto avança a passos
largos, mas na memória dos homens e dos lugares, os exemplos como os do Ti Vara
ficarão a marcar, de forma indelével, a história de um tempo que foi de
esperança e de luta, por um futuro melhor.
Obrigado, Zé Lopes!
Mário Mendes in "À
Flor da Pele" - "Alto Alentejo" 11/4/2012