Lembrando o
Ti Zé da Brígida, 50 anos de vida pastoril (1)
Toda a vida fui pastor _
Toda a vida guardei gado
Já tenho o meu peito aberto
De andar ao pau encostado
Popular (Tolosa)
**************
Remonta aos tempos pré-históricos o aparecimento do
pastoreio, uma actividade económica que teve grande importância na Idade Média,
testemunhada pelos documentos oficiais, nos quais se citam grandes quantidades
de gado, nos contratos, nas doações, nos testamentos. A atestar esta
importância está o interesse que a vida dos pastores, aliada sempre a um certo
bucolismo, despertou na literatura desse tempo. São conhecidas as
"pastorelas" - canções tradicionais do cancioneiro galaico-português
e as sertanilhas, bem como as referências que lhe fazem grandes escritores como
Gil Vicente, Camões, Bernardim Ribeiro, entre outros, que retratam nas suas
obras aspectos da vida pastoril.
Hoje em dia o pastoreio tem ainda alguma
importância, embora relativamente à economia geral ela seja menor que no
passado.
É esse universo feito de bucolismo, superstições,
de arte e solidão, de beleza e nomadismo, que iremos retratar, servindo-nos das
palavras do ti Zé da Brígida e aproveitando uma longa e proveitosa conversa no
Verão de 1992.
O Ti Zé da Brígida
José Maria Beato - Zé da Brígida - nasceu em Nisa,
no distante ano de 1902.
Não conheceu os bancos da escola, o tempo de brinca
próprio da infância.
A sua meninice foi outra. As dificuldades de uma
família numerosa, cedo o remeteram para a vida árdua do campo.
- "Fui para o campo desde pequeno. Comecei a
ganhar aos 7 anos. Principiei a guardar um rebanho de cabras, numa casa para
onde o meu pai tinha ido quando eu tinha dois anos. Nasceram-me os dentes nesta
vida. Sobre a vida da lavoura sei tudo.
Andei a guardar gado e a fazer queijos mais de 50
anos ! "
Ser pastor constitui uma profissão à parte, que em
geral se segue toda a vida e tende a fixar-se na família, durante sucessivas
gerações.
"O meu pai tinha a mesma vida. Eu comecei a
ganhar na companha dele e com ele é que fui aprendendo. Vivíamos sempre no
campo. A nossa casa era o chôço. Não era como agora que vão dormir a
casa".
Fez a "travessia no deserto" . De criança
a adulto, trabalhando em diversos mesteres servindo a vários amos como Jacob.
“ Andei com uma carreta a apanhar feno para os
palheiros; fiz quase todos os trabalhos do campo até ir para a tropa, onde
estive quinze meses e meio. Depois casei. Casei no dia 20 de Agosto de 1922 e
ao fim de 15 dias de casado marchei a caminho da Cunheira. Estive lá 8 meses a
fazer fardos de cortiça. Mas eu andava era com a lida de me fazer pastor. Foi a
minha criação. Meti-me na vida de pastor e nesta vida andei cinquenta anos.”
O Alentejo é terra de grandes culturas e das
grandes extensões.
O concelho de Nisa "entalado” entre a
planície, com as suas terras de barro e areia a perder de vista e as serranias
beirãs, constitui uma zona de transição, onde se entrecruzam e formam um todo
quase uniforme, influências de uma e outra região.
Não há aqui pastoras como as descritas nos "autos
pastoris" de Gil Vicente, ou as lindas pastorinhas" do romance
popular.
As cabeças de gado lanígero mantêm uma grande
importância na vida económica da região. Os rebanhos, transitando de herdade em
herdade, por vezes a grandes distâncias, são guardados exclusivamente por
homens.
Homens a quem era exigido um trabalho persistente,
por vezes árduo, um tipo de vida solitário, nómada, quase eremita.
Ao romper da bela aurora
Sai um pastor na choupana
Vai dizendo em altas vozes
Muito padece quem ama.
(Popular – Alentejo)
“Levantava-me de madrugada e a primeira a coisa que
fazia era o almoço. Bontava (metia) os feijões pretos ao lume e era assim
durante o ano todo.
Tinha o bardo para mudar todas as manhãs. Eram 70
cancelas que eu tinha de carregar às costas. Havia dois ajudas, um para ajudar
no almoço, outro para segurar as ovelhas para elas não abalarem.
Almoçava logo ao nascer do sol no chôço, e
chegava-se a hora do gado sair, marchava-se com ele até à noite. Ao mei dia
comia qualquer coisa, pão com conduto que levava no sarrão. À noite chegava a
prender cinquenta ovelhas à perna do bardo, sem nenhuma querer o borrego
(enjeitávam-nos).
No tempo da ordenha , eu não estava tratado
(contratado) para ir para o alavão, mas para trazer a pensão sempre diante de
mim, obrigava-me a ir.
Era bom para o patrão que assim não pagava ao
alavoeiro e eu ia fazendo o serviço por uma bagatela" .
A ordenha e a tosquia são dois períodos importantes
na exploração do gado de lã. A ordenha começa geralmente pelos meados de
Fevereiro, tendo os pastores procedido antes à rabeja - tosquia local de alguma
lã que possa estorvar no acto da ordenha.
Rabejadas as ovelhas e apartados os borregos para
uma das pastagens onde as mães nãos vejam e não ouçam, fica construído o
alavão.
Há duas ordenhas regulares durante o dia; uma de
madrugada, outra ao começar da tarde. A ordenha faz-se no aprisco, que tem
apenas largura suficiente para trabalharem quatro homens a par e o comprimento
suficiente para nele caber todo o alavão.
Os quatro homens são o maioral do alavão, o ajuda
do alavão, o roupeiro e o ajuda do roupeiro. Cada um deles ordenha uma ovelha
no seu ferrado e passando-a depois para trás das costas, segue com outra e
assim sucessivamente.
Quando os quatro homens chegam ao cabo de um alavão
de oitocentas cabeças ou mais, chegam derreados. É uma tarefa que se repete
duas vezes ao dia e se faz sem interrupção durante três a quatro meses.
Dá-me a chéve da quinjêra
Pra i busqué a aferrada
Porque o quêje mestice
Leva munta coalhada.
(Popular – Nisa)
“Sempre gostei de fazer queijos. Aprendi com o meu
pai, de modos que além de pastor também era roupeiro. E a fazer queijos não
queria que me "bontassem” (pusessem) as mãos em cima.
O leite chegava à queijeira na aferrada e passava
para o azado. Ia-se aquecendo e voltando e deitávamos-lhe cardo até coalhar. A
temperatura era importante. A coalhar devia demorar uma hora. Assim é que
estava bem. Depois a coalhada era tirada para cima do parreirão ou francela,
onde era migada, remigada e apertada nos acinchos.
Com oito litros dava um queijo dos grandes com um
quilo e meio, era a tabela, o verdadeiro queijo de Nisa".
Os queijos, a queijeira ou rouparia, são também
parte integrante do mundo do pastor. Um mundo onde as superstições andavam à
"rédea solta " e faziam lei. Uma lei talvez alicerçada no saber de experiência
feito, quem sabe...
"Feito o queijo tirava-se do parreirão,
mudava-se para as pingadeiras e mais tarde ia para as tábuas. Ai estava
sessenta dias na cura. Aqui só levava sal e "limpezas”. Quantas mais
melhor. Quase no fim da cura, eu punha-lhe, untava-os com uma pinga de azeite
para ficarem amarelos e não terem sarro nem bolor.
Na queijeira só devia entrar gente de confiança e
pouca. Mulheres, então, o menos possível.
Uma ocasião estava na rouparia em casa do meu
compadre. Um dia foi lá a patroa e uma irmã do meu compadre. Ela ia muito mal
disposta. Ela não se lembrou e eu não sabia como ela vinha. Pediram-me para
entrar na queijeira e... escangalharam-me o serviço. Os queijos deram em sair
olhados e ainda se estragaram alguns. Enfim é a pior coisa que pode haver é uma
mulher que esteja... que ande ... mal disposta, com o “incómado”, entrar numa
coisa daquelas".
O vestuário
O ti Zé da Brígida é hoje reformado, vivendo de uma
magra pensão que mal dá para lhe atenuar a tristeza de uma velhice
compartilhada com a solidão.
Mantém ainda uma expressão vigorosa e uma memória
de fazer inveja a muita gente nova. Quando fala do seu mundo da pastorícia, do
bardo com as suas ovelhinhas ou da "Cigana" uma rafeira de guarda,
companheira fiel de tantos dias e noites, nota-se-lhe um certo embargo na voz.
“ Podem dizer o que quiserem mas a vida de pastor
era muito ruim. Meses no campo sozinho, às vezes dias inteiros sem ver ninguém,
ali andávamos entregues à bicharada. Fazíamos tudo, desde o comer ao fato que
trazíamos vestido.”
O fato, como os costumes e os segredos da profissão
eram passados de geração em geração.
"Era o mesmo que já usavam os nossos pais.
Tinha a roupinha, umas calças de saragoça e vestia uma samarra. Era um casaco
de lã feito de peles. Depois de preparada levava aí umas 5 ou 6 peles.
Por cima das calças usávamos os safões e umas
plainas, umas engorras feitas de pano de chapéu velho. Calçávamos tamancos,
feitos de pau de figueira, salgueiro ou amieiro.”
Os tamancos era espécie de sapatos de sola de pau,
presos por correia sobre o peito do pé (diferentes dos tamancos do Norte); são
ferrados com brochas de arame preparadas, tal como as peças de vestuário,
nomeadamente os safões e a samarra, pelos próprios pastores.
Sobre os tamancos trazem polainas de couro,
chamadas botas afiveladas pelo lado de fora.
Nos pés os pastores podiam calçar ou não miotes,
feitos com linha “grossa” (fiado) pelas mulheres dos próprios pastores.
Para além deste vestuário o pastor de Nisa usava
também o gabão – um casacão ou capote alentejano – indispensável nas gélidas
noites de Inverno.
O gabão tem, aliás, uma curiosa história. Era
costume em Nisa o patrão (o lavrador) pelo S. Miguel, oferecer ao pastor com
mais uma ano de casa, dinheiro para a compra de um gabão, ou mesmo oferecer o
próprio gabão já feito e pronto a usar. O gabão entrava assim no contrato de
ajuste ente o lavrador e o pastor e talvez por isso se ouça, por vezes, na
região: “Quem tem gabão sempre escapa / Quem não tem, escapará ou não”.
Na cabeça o pastor usava um barrete (“um garruço
preto” – como diria o ti Zé da Brígida) e como acessório do vestuário usava o
cajado – pau direito ao qual se encostava ou que atirava ao gado – instrumento
emblemático, simbólico, formando com o sarrão as insígnias do pastor.
Eu vou per daqui abaixo
C´uma cajadinha às costas
Se eu não achar as ovelhas
Vou ser pastor de cachopas
(Popular – Tolosa)
No ombro esquerdo traz pendurado o sarrão feito de
pele de um chibo ou de um borrego, com pêlo para fora, exactamente como um
chibo sem cabeça; às pernas do chibo prende-se a correia de pendurar o sarrão.
Dentro do sarrão o pastor transporta os seus principais utensílios: colher de
pau ou de corna, canivete, consoante a comida e o conduto, e ainda alguns
apetrechos de trabalho como sovela, martelinho, alicate, turquês e navalha.
O Chôço
“A vida de pastor, além de andar com o gado, é
passada no chôço. Ali é que é a sua casa. Foi no chôço que os meus pais criaram
uma “catrinféda” (muitos) de filhos. E todos se criaram. No chôço se passava o
Natal e os dias festivos com os meus filhos, mesmo depois de eles se casarem e
irem para a vila. Traziam a família, vinham de véspera e aqui se acomodavam
todos. No chôço e no emparo." (amparo – chôço secundário e agregado ao
principal).
"O chôço é feito com paus de freixo ou de
azinho, moldados por nós e era coberto com giestas e colmo. Levava aí uma
camada de três dedos de colmo. Bem feito não havia água que entrasse nele.”
Dentro do chôço e para além dos utensílios
necessários ao seu mister, o pastor tinha também o seu “mobiliário”
tradicional: uma ou duas tropeças (tripeças – bancos de cortiça ou um burro de
pau) que ele próprio construía e um caldeiro para cozinhar.
A gastronomia, bastante pobre, consistia
especialmente de açorda, feijão-frade cozido – recolhido do feijoal de arado
(era semeado com o arado pelo pastor dando este a semente) sendo esta também
uma das condições do contrato de ajuste.
(Continua)
VOCABULÁRIO
* Ajudas -
Segundo pastor do rebanho (ajudava no alavão, no pastoreio e na queijeira)
* Alavão - Nome do rebanho que dá leite (do árabe
al-labban)
* Alavoeiro - Nome do pastor que andava no alavão
* Achincho - Forma redonda onde é colocado o coalho
e apertado e de onde sairá o queijo.
* Maioral – Primeiro pastor de cada rebanho -
tantos maiorais quantos rebanhos.
* Queijeira ou Rouparia –Local onde se faziam os
queijos – geralmente um palheiro velho ou cabanal no monte
* Safões (Ceifões ou Çafões) - são usados pelos
pastores durante todo o ano. São peles de ovelha com lã e feitos pelos próprios
pastores.
* Pelico- Por vezes também chamado de samarra,
embora sejam diferentes. É uma grande jaqueta de peles que os pastores trazem
vestida nos dias mais frios.
* Aprisco - Formado por cancelas como as do bardo
mas dispostas de modo diferente,
formando um corredor, com uma entrada mais larga. Era o local onde os
pastores procediam à ordenha. Nalgumas regiões é chamado de redil.
* Parreirão (francela e queijeira) - Mesa de pinho
onde o roupeiro e o ajuda trabalham na confecção do queijo, apertando os
achinchos.
* Corna - Recipiente para transportar comida usado
pelo pastor; adaptação de chifres de gado vacum. São ornamentados com desenhos,
feito pelo pastor e talhados com perícia.
* Gabão - Também chamado cassacão ou capote, ou
ainda capote alentejano.
* Sarrão (ou surrão, do espanhol surron) - Feito de
pele de um chibo ou de um borrego com o pêlo para fora.
Mário Mendes in "Alto Alentejo" -