O contrato-tipo, que a Câmara de Montes Ermos assinava com
os regentes que contratava para a sua Banda de Música, dizia preto no branco:
Artigo 17º - "O regente é obrigado a dar, pelo menos, dois ensaios por
semana e, além desses, todos os que as necessidades de serviço aconselharem”.
E, logo, no parágrafo único do mesmo Artigo 17º estabelecia que o regente
tinha, também, a seu cargo, “ensaiar o Coro da Câmara, obrigando-se a
apresentá-lo, no ultimo domingo de cada mês, abrilhantando a Missa Solene do
meio-dia”.
Bizarra, no mínimo, esta cláusula. Mas Montes Ermos eram
isso mesmo. Ao apresentar, em cada actuação do Coro da Câmara, uma antífona, um
salmo ou um motete que, expressamente, compunha para o acto, desde a primeira
hora, Mestre Horácio tornara, porventura, mais bizarra, ainda, esta cláusula.
Num breve parêntesis, diga-se, de passagem, que, pelo menos,
uma vez por mês, a vetusta igreja medieva era pequena para comportar a
afluência de fiéis. E não só. Foi num desses domingos que conheci o Papo-Seco.
Nunca descobri a razão por que lhe chamavam “Papo-Seco”. Em linguagem de Montes Ermos, um Papo-Seco é um indivíduo apurado no vestir, um janota, um casquilho, um peralta, um elegante, e ele não passava de um maltrapilho. Uma figura tosca, atarracada, andrajosa, com um sorriso imbecil numa cara de idiota. Contudo, foi o mais extraordinário caso de intuição musical, que conheci, até hoje. Era um maltesão, um desses vagabundos que palmilham as estradas sem sombras do Alentejo, batem á porta de todos os montes, a quem os cães ladram, ao vê-los passar e de quem os garotos se escondem, sempre, receosos. O Papo-Seco, contudo, era um paz d´alma, um pobre diabo inofensivo que, sempre, respondia com um sorriso a um insulto. Persistente, no seu périplo interminável, aparecia,em Montes Ermos ,
invariavelmente, por ocasião das festividades religiosas de Verão a que se
associava, sem convite e sem cerimónias, fazendo alarde de uma voz de tenor
pouco vulgar. Para a missa solene
daquele quarto domingo de Agosto, Mestre Horácio compusera e ensaiara um
“Tantum Ergo”, cuja estreia o próprio Coro da Câmara caprichara em anunciar,
com grande antecedência. Resultado: expectativa, ansiedade e a igreja sem lugar
onde coubesse mais um alfinete. A organista fizera soar, apenas, o primeiro acorde de
introdução, quando um murmúrio alastrou por entre todo o coral. Mestre Horácio
voltou-se e, por cima dos óculos, viu um quadro que desejara não ter visto.
Recostado no vão da porte de acesso ao local destinada aos cantores, estava o
Papo-Seco. Descalço, andrajoso e sujo, como sempre, mas mostrando os dentes,
inexplicavelmente brancos, naquele sorriso tranquilo, ingénuo e simples, que
todos lhe conheciam. Mestre Horácio hesitou, por um momento, mas confiou em
todos os santos da sua devoção e o “Tantum Ergo” começou a ouvir-se. No final
da primeira estrofe, o alívio foi geral. Contrariamente ao que era costume o
Papo-Seco não se associara ao Coro. A um canto, e parecendo alheado de tudo,
permanecia imóvel, de olhos postos no altar-mor, lá longe, no outro extremo da
nave. O órgão fez ouvir os acordes de um breve interlúdio. Mestre Horácio
levantou a mão para dar entrada ao Coro e, nesse preciso instante, a voz forte,
timbrada e sonora do papo-Seco elevou-se num solo surpreendentemente belo, sem
uma única falha na harmonia dos acordes do Coro da Câmara, que ficou a ouvir-se
como fundo maravilhoso, sustentando um solo improvisado mas verdadeiramente genial. A saída da missa de domingo é, sempre, um acontecimento em Montes Ermos. Julgo
que em toda a parte. Até mesmo nas grandes cidades, as pessoas aproveitam a
saída da missa para se cumprimentarem, matarem saudades, saberem novidades,
mostrarem vestidos, comentarem ditos e mexericos e, Deus me perdoe, até,
dizerem mal dos outros. Mestre Horácio era aguardado com redobrado interesse. E compreendia-se.
Para mais, numa terra, onde toda a gente
sabia de tudo e se arrogava a dar opiniões e pareceres, sobre música, mesmo sem
nunca ter aprendido a distinguir uma nota de música de uma atafona. Mal transpôs a porta da igreja, Mestre Horácio foi o centro do mundo.
“Parabéns, Mestre, muitos parabéns”. “ O seu Tantum Ergo é maravilhoso”. ”Que
coisa mais linda, parabéns”. “Obrigado, Mestre, a sua música é verdadeiramente
extraordinária”. E tudo isto repetido, com as mesmas ou por outras palavras,
até que se abriram alas e se fez um expectante silêncio. A senhora Morgada da
Faiopa aproximava-se, com o habitual séquito. “Parabéns, Mestre, que
encantadora a sua música. É linda, linda, linda, linda. Tudo muito afinadinho.
Todos muito certinhos. Adorei, adorei, adorei, adorei. Parabéns, mais uma vez.
Ah! Uma pergunta só. Quem cantou aquele solo, verdadeiramente, encantador? A
melodia é extraordinária, mas a voz é soberba. Nunca ouvi nada tão belo, tão
raro, tão singular. Quem cantou?”. Estendendo o
braço, lentamente, Mestre Horácio apontou e disse, apenas, “Aquele. A melodia e
a voz eram dele”.
Nunca descobri a razão por que lhe chamavam “Papo-Seco”. Em linguagem de Montes Ermos, um Papo-Seco é um indivíduo apurado no vestir, um janota, um casquilho, um peralta, um elegante, e ele não passava de um maltrapilho. Uma figura tosca, atarracada, andrajosa, com um sorriso imbecil numa cara de idiota. Contudo, foi o mais extraordinário caso de intuição musical, que conheci, até hoje. Era um maltesão, um desses vagabundos que palmilham as estradas sem sombras do Alentejo, batem á porta de todos os montes, a quem os cães ladram, ao vê-los passar e de quem os garotos se escondem, sempre, receosos. O Papo-Seco, contudo, era um paz d´alma, um pobre diabo inofensivo que, sempre, respondia com um sorriso a um insulto. Persistente, no seu périplo interminável, aparecia,
Do outro
lado da rua, num mar inebriante de sol, o Papo-Seco tentava, com um sorriso
meigo e gestos brandos, afagar um cão vadio, como ele, mas que lhe rosnara, ao
passar. Não sei que é feito dele. Mas, se não morreu, ainda, talvez continue
palmilhando as estradas sem sombras do Alentejo, visitando todas as vilas e
aldeias, enchendo todas as igrejas, nas missas de Domingo, com aquela
maravilhosa voz de tenor, sem escola, e a rara intuição de músico nato. O Coro
da Câmara de Montes Ermos é que terminou nesse último domingo de um de Agosto,
já recuado, só porque, naquela terra de eleição, houve quem não quisesse ou não
pudesse aceitar que o Papo-Seco, sendo, embora, um maltês, vagabundo e
andrajoso, possuísse, no entanto,uma réstia de centelha divina. Carlos Tomás Cebola – Janeiro de 2000