"Não havia enchidos com a
qualidade dos nossos"
João da Cruz Cebola Caixado, tem
77 anos, um terço dos quais dedicados à salsicharia tradicional. Foi alfaiate e
merceeiro, mas os fracos proventos auferidos nestas actividades, levaram-no a
enveredar pelo comércio de carnes frescas e de enchidos.
"Cessei a minha actividade
há oito anos. Estive à frente de uma salsicharia durante vinte e cinco anos.
Era um negócio "caseiro", familiar, como quase todos os deste ramo na
vila de Nisa. Comprava os porcos, levava-os ao matadouro, ajudava a matá-los e
depois era eu que os desmanchava, em
casa. A minha mulher, ajudada por outra, a
"enchideira", encarregavam-se de migar a carne e proceder ao
enchimento das tripas. Os enchidos eram, depois, colocados, em varas, no
fumeiro, para o processo de "cura", com lenha de azinho. Era assim
que, em minha casa e em mais de uma dúzia de salsicharias de Nisa, se
trabalhava."
João Caixado, recorda esses
tempos de azáfama, com um brilho nos olhos e fala dos enchidos de Nisa com
indisfarçado orgulho:
" Naquele tempo quase todas
as pessoas tinham o seu bacorinho para engordar. A furda, no quintal, ou a
pocilga, no chão (tapada) serviam para aproveitar as viandas, e a engorda do
porco representava uma grande ajuda para os magros proventos das
famílias."
Os salsicheiros adquiriam a maior
parte desses suínos, avaliados e pagos "à arroba", que conduziam ao
matadouro municipal onde eram abatidos.
"No meu comércio, havia duas
"matanças" por semana, às quartas e sextas-feiras, dois ou três
porcos, às vezes menos, conforme a época, a oferta e a procura".
Os enchidos tradicionais de Nisa,
como o chouriço, a cacholeira, a linguiça, a moura, a morcela e a farinheira,
tinham grande procura, consoante o tipo de consumidores e de
"bolsas". A lavoura tinha, ainda, um grande peso na actividade
económica de Nisa e os trabalhadores rurais aviavam as suas "fatadas"
onde não faltava o bocadinho de conduto: os enchidos.
Foi assim até à década de 70.
Depois, ao progressivo abandono dos campos e à imposição de novas regras e
restrições no abate e comércio de gado suíno e ovino, juntou-se a avançada
idade de grande parte dos salsicheiros de Nisa, que se viram remetidos para uma
situação "entre a espada e a parede".
Prosseguir a actividade
significava vultuosos investimentos em instalações e equipamentos, projectos,
processos burocráticos para os quais faltava paciência, informação e ajuda.
O sector atravessava uma grande
indefinição. À entrada na CEE, seguiu-se o encerramento dos matadouros
municipais, uma das medidas que, aos olhos de Cavaco Silva, nos transformava em
"bons alunos" da realidade europeia. Tal decisão significou, a nível
local e regional, um profundo golpe numa economia de subsistência: o matadouro
municipal foi, directa e indirectamente, a base de sustento de muitas famílias.
João Caixado, seguiu o caminho de
outros salsicheiros nisenses: fechou as portas e acabou com o negócio. Uma
decisão que não foi fácil e que ainda hoje recorda com algum pesar.
"Começou a haver
concorrência, vinda de fora. O abate de gado fazia-se nos matadouros
industriais, com grandes armazéns frigoríficos e estes vendiam aos comerciantes
as partes dos porco que lhes pediam. Por um lado, era mais fácil e vantajoso
adquirir só o que nos interessava, pois os ossos e os toucinhos, às vezes, eram
para mandar fora. Fui mantendo, enquanto pude, a actividade. O pior foi a
imposição de construir ou remodelar as instalações e com a idade que tinha
pensei que o melhor era encerrar o comércio."
Hoje, olha para trás com alguma
nostalgia. Tem saudades do matadouro, dos clientes, do movimento da casa, da
procura dos bons enchidos de Nisa e revela-nos as razões de serem tão
apreciados.
"A qualidade começava, em
primeiro lugar, nos animais. A carne dos porcos de montado, alimentados a lande
e a bolota, tinham, logo, outro sabor. Depois, era a escolha e preparação das
carnes, de acordo com o tipo de enchidos. Os chouriços e as linguiças, eram de
uma qualidade, as cacholeiras e as mouras, de outra, e por aí fora. Aspecto
importante eram os temperos. O pimento de horta, o saber migar e
"adubar", uma arte, centenária, das mulheres-enchideiras de Nisa, o
tempo da carne em repouso, para tomar os temperos, enfim, parecem coisas sem
importância, mas são aquelas que davam valor, qualidade e fama, aos enchidos de
Nisa. Havia lá havia enchidos como os nossos...".
Mário Mendes - in "Jornal de Nisa" - 2003