Na
sua carreira de vinte anos a jogar futebol, só por uma vez viu
ser-lhe mostrada a “cartolina” vermelha, num jogo, em Portalegre,
com o Desportivo, sendo expulso do campo. Este é o único episódio
da sua vida desportiva que recorda com alguma sensação de
incomodidade. De resto, o passado futebolístico de José Manuel
Barreto, é um registo de memórias que se confundem com a própria
história dos tempos áureos do Sport Nisa e Benfica. Deixemos que
seja o próprio a contá-la.
Como
tudo começou
“Nasci
em Nisa em 1958 e cresci como tantos outros miúdos. Naquele tempo
não havia “escolinhas” como há hoje e as ruas eram os nossos
campos de jogos. Lembro-me de jogar à bola no pátio do Nisa e
Benfica (quintal), atrás do Celeiro, na Devesa, onde calhava.
Disputávamos jogos bem renhidos com a malta da Fonte da Pipa e da
Vila, alguns bem durinhos e que, por vezes, havia sempre umas
pedradas.
E
as “arrelias” não acabavam aqui, pois quando chegávamos a casa
ainda ouvíamos ralhar os nossos pais: “ Ah! Malandro, que dás
cabo dos sapatos!”
Quando
tinha 15 anos, uma direcção do Nisa e Benfica apercebeu-se que
havia muitos jovens com qualidade e resolveu inscrever uma equipa no
“Distrital”.
Foi
assim que comecei a jogar em provas oficiais e nos juvenis.
Ainda
me lembro bem do primeiro jogo. Éramos uns “putos”, pouco
desenvolvidos e no balneário olhávamos para os do Campomaiorense,
nessa altura um clube já com nome e dissemos uns para os outros:
“vamos levar três ou quatro, eles são só matulões!”.
Em
campo, o que se passou foi o contrário e ganhámos por 7 – 0, com
4 golos do João Temudo e 3 que eu marquei. Como é que foi isso? O
nosso jogo era um pouco “à inglesa”, pontapé para a frente, eu
e o João corríamos muito e era praticamente uma questão de sprint
e marcar.
Conseguimos
o 2º lugar no campeonato, um êxito logo na estreia e fomos disputar
a Taça Nacional de Juvenis. Depois, a equipa “desfez-se”, alguns
colegas foram jogar para outros clubes da região, principalmente o
Alter que apostava nos juniores.”
Um
jovem entre os adultos
“Eu
não quis sair, fui ficando por aqui e com 17 anos estava a integrar
a equipa de seniores que acabara de conquistar o título distrital e
subira à 3ª divisão nacional (1975).
A
primeira vez que joguei foi para a Taça de Portugal, em Portalegre,
com o Sport Lisboa e Cartaxo. O prof. Moura saiu, faltavam aí uns 10
minutos para o jogo acabar, quando eu entrei e logo a seguir há um
remate à baliza do Cartaxo, o guarda-redes defende, a bola foi ao
poste e eu vinha em corrida, a acompanhar a jogada e marquei.
Ganhámos
por 1-0 e foi uma loucura, pois tinha ido muita gente de Nisa.
Na
eliminatória seguinte fomos jogar a Barcelos com o Gil Vicente, da
1ª Divisão. Eu também fui, como prémio por ter marcado o golo,
mas não cheguei a equipar-me. Perdemos, como era natural, dada a
diferença das equipas.
No
ano seguinte, descemos ao distrital, mas houve alguns jogadores que
regressaram como o Parreira, Vitorino, etc. e voltámos a subir à 3ª
divisão e a passar à 2ª eliminatória da Taça, desta vez com uma
deslocação ao Algarve. Fomos jogar com o Portimonense que tinha
jogadores como o Damas, o Norton de Matos,
Freitas,
todos eles jogadores internacionais, para além de outros. Fomos
eliminados e a nível de Taça de Portugal, que disputámos várias
vezes, o Nisa e Benfica nunca teve sorte de jogar com um clube da 1ª
divisão, já nem falo dos grandes, em “casa”.
Estivemos
três épocas consecutivas na 3ª divisão, tínhamos uma equipa
muito boa e constituída à base de jogadores de Nisa.”
“Tudo
isto embora não houvesse condições e infra-estruturas. Lembro que
no primeiro ano da terceira divisão não havia luz no campo e para
treinarmos à noite, quando todos tinham disponibilidade, era coma
luz dos faróis dos carros dos dirigentes. Não havia água
canalizada, tinha que ser fornecida em bidões, faltava um mínimo de
condições, mas havia uma vontade de ferro, amor à camisola e não
ganhávamos nada.
Também
é verdade que não havia discotecas, bares, internetes, outros
desportos e isso facilitava a que a malta se juntasse para jogar
futebol.”
Mudanças
no futebol distrital“As
coisas mudaram com o reforço das equipas e o pagamento a jogadores,
a nível distrital. Começou a ser mais difícil constituir equipas e
subir de divisão.
Eu
mantive-me em Nisa porque tive também a companhia do meu irmão
(Toninho Barreto). Ele era defesa e eu avançado. Todo este percurso
de dez anos (dos 16 aos 26) foi acompanhado por ele.
Depois
de 10 anos consecutivos em Nisa, joguei uma época no Eléctrico
(Ponte de Sor), mas era um pouco duro, já que trabalhava no Gavião
e treinávamos quase todos os dias, pois o Eléctrico estava na 3ª
divisão e tinha já alguns profissionais, o que elevava o grau de
exigência. Em Ponte de Sor tive a sorte de defrontar um dos
“grandes” do futebol português. Recebemos o Sporting para a Taça
de Portugal, com o campo cheio e um espectáculo memorável. Perdemos
por 1-2 e eu entrei na 2ª parte.
Depois
do Eléctrico passei a representar os Gavionenses (trabalhava no
Gavião) durante quatro épocas, uma na 3ª divisão e três no
distrital. Tinha 31 anos, queria vir para Nisa e acabar aqui a
carreira desportiva, mas os dirigentes do Castelo de Vide há muito
que andavam atrás de mim e acabei por representar a AD de Castelo de
Vide, uma época na 3ª divisão. Foi a altura, devo dizê-lo, em que
ganhei algum dinheiro de jeito no futebol.
Aos
32 anos regressei ao Nisa e Benfica que representei durante mais três
épocas, no distrital, acumulando numa das épocas a função de
treinador juntamente com o António Veludo. Aos 36 anos, achei que
estava na altura de dar o lugar a outros e pôr ponto final numa
carreira desportiva de vinte anos, a nível competitivo.”
Recordações
do jogo da bola
“Em
tantos anos a jogar futebol há muitos momentos de que guardamos
recordações. A do jogo com o Cartaxo para a Taça, talvez por ser o
da estreia, ou os jogos emocionantes que tivemos em Nisa com o
Bombarralense (vitória por 4-3 tendo marcado dois golos), o Rio
Maior, que era o guia isolado e perdeu em Nisa pela primeira vez
(3-2) ou ainda um célebre jogo com o Benfica de Castelo Branco que
precisava de vencer para subir à 2ª divisão. O Campo do Sobreiro
teve uma enchente nunca vista e o jogo foi empolgante. Eles tinham
uma grande equipa, com jogadores muito experientes como eram o
Camolas, o Malta da Silva e outros emprestados pelo SL e Benfica. Mas
nós também tínhamos uma equipa muito aguerrida e unida, e
“estragámos-lhes” a festa, não deixando que levassem a vitória
(1-1).
O
futebol e a formação do indivíduo
“O
desporto, o futebol, deu-me muita coisa, principalmente muitas
amizades. Na minha vida profissional, retenho muitos dos princípios
básicos do futebol, o espírito de equipa, o trabalho de grupo.
Dos
primeiros anos de jogador ficou uma amizade muito forte e que ainda
hoje se mantém com os elementos da equipa de veteranos.
Em
muitas terras e locais aonde vou, aparecem pessoas que me falam,
cumprimentam e eu não sei quem são. Mas eles lembram-se de mim,
talvez por me terem visto jogar.”
“Marcas”
que o desporto deixa
“Uma
carreira desportiva de 20 anos tinha que deixar algumas marcas. Tive
como todos algumas lesões e as mais graves obrigaram mesmo a
intervenções cirúrgicas. Fiz duas operações, devido a uma
fractura do braço e a uma fractura no joelho.
As
pessoas que me viram jogar, podem falar melhor do que eu, mas acho
que fui sempre um jogador disciplinado e só uma vez é que fui
expulso.
Num
jogo com o Desportivo, levei uma cotovelada no maxilar, que me doeu
bastante e reagi instantaneamente ao pontapear o jogador que me tinha
agredido. Fui expulso, senti-me revoltado, por ter sido agredido e
por ter respondido daquela maneira, mas acho que não é nenhum
exemplo de que me possa orgulhar.”
Conselhos
para as novas gerações
“Que
conselhos daria aos mais jovens? Aqueles que tenho dado ao meu filho,
incutindo-lhe o prazer de jogar futebol, os valores do espírito de
grupo, da camaradagem e de uma vida saudável, sem esquecer o dever
da disciplina e o respeito pelos outros, sejam companheiros ou
adversários. Para aqueles que sonham em ter uma carreira
futebolística, aconselho-os a terem humildade, a trabalhar e que
encarem o futebol como uma possível profissão, mas sem nunca
desprezarem o aspecto do convívio e da amizade. O futebol é um
desporto muito importante, mas não devemos fazer dele um objectivo
de “vida e ou de morte”. Pratiquem desporto, joguem com prazer,
futebol ou outras modalidades, hoje, felizmente, há muitas mais
ofertas do que aquelas que eu tive enquanto jovem.”
O
desporto em Nisa, ontem e hoje
“Acho
que mudou muita coisa e nem sempre para melhor. Nos anos 70, todas as
casas comerciais, consoante as suas possibilidades, ajudavam o clube.
Não havia condições nem infra-estruturas, como referi, mas havia
uma grande vontade, malta muito unida, uma mística no Nisa e Benfica
que fazia com que fossemos respeitados em todo o distrito. Jogava-se
por amor à camisola, pelo prazer de jogar e hoje há a expectativa
de tirar algum rendimento. O campeonato distrital é reflexo desse
mesmo paradoxo: há clubes que têm dinheiro e clubes que fazem das
tripas coração para conseguirem chegar ao fim. Há um grande
desequilíbrio e assim o futebol não progride.
Sinto
que o projecto do futebol juvenil terminou de forma abrupta, sem se
acautelarem algumas situações, como a dos jovens que estavam nesses
escalões e a quem foram cortadas alguma expectativas.
A
nível de infra-estruturas, Nisa continua sem um campo com piso
sintético, capaz de cativar os mais jovens. Terras mais pequenas e
sem o historial desportivo de Nisa têm esse problema resolvido.”
Se
pudesse voltar atrás...
“Todos
nós temos um tempo para viver. Eu vivi o meu, enquanto desportista.
Não me arrependo em nada por aquilo que fiz pelo Nisa e Benfica e
pelo contributo que dei ao futebol e ao desporto. Poderia ter havido
outro reconhecimento, mas sinto-me feliz e orgulhoso por tudo o que
dei ao futebol e a Nisa e também por aquilo que o futebol me deu.”
Pelo
amor à camisola
José
Manuel Tremoço Barreto, bancário, 50 anos, casado, dois filhos,
vinte anos de jogador de futebol. O resto da sua história de vida,
fiel aos princípios por que se bateu ao longo de uma carreira
desportiva, que atingiu grande brilhantismo, pouco mais teria que
contar. Nasceu em Nisa e para o clube da sua terra contribuiu, não
apenas com os golos que marcou, muitos golos, com os pés ou a
cabeça, mas como um exemplo, notável, de humildade, disciplina,
dedicação ao futebol.
Predicados
que fizeram dele e o dos clubes que representou (o Nisa e Benfica em
primeiríssimo plano) referências no desporto regional e nacional,
numa época em que ser desportista significava, em primeiro lugar,
ter amor à camisola, prazer de jogar e competir, arrojo e desafio
perante as adversidades.
José
Manuel Barreto e tantos outros, são os lídimos representantes dessa
escola de desportistas que projectou e fez respeitar o nome de Nisa.
Se
mais não fosse, só por isso mereceria, incontestavelmente, o
reconhecimento que, aqui e agora, lhe prestamos.
* Mário Mendes in "Jornal de Nisa" nº 255 - 14 Maio de 2008