Uma das
(últimas) figuras populares de Nisa
É um
homem de expressão fácil e olhar atento, nos seus 86 anos de uma vida cheia de
mil episódios e peripécias. No relato que nos fez, de algumas dessas
"passagens da vida", há sempre um motivo hilariante, alegre,
divertido, a rematar e a concluir de forma prazenteira, o capítulo da conversa.
Caros
leitores, fiquem com Caetano Tomás S. Pedro, uma das figuras populares de Nisa e vejam,
por ele mesmo que, face às desgraças que
por aí vão, rir (ainda) é o melhor remédio...
Este
homem, se tem sido aproveitado, dava um actor de primeira água. Os tiques, as
expressões, os gestos, repentinos, ou as respostas desconcertantes, fizeram
dele uma das figuras típicas e populares mais conhecidas de Nisa.
De origem
modesta, não menos modesta e humilde tem sido a sua vida de mais de oitenta
anos. Simples, sim, mas sem perder o sentido da alegria e do divertimento.
Caetano
Tomás S. Pedro foi aprendiz de sapateiro, padeiro, pintor, caiador, homem de
mil ofícios, malabarista das palavras, humorista nas horas vagas e sempre que a
oportunidade se lhe deparou. Apesar da idade avançada, mantém um sorriso
permanente, aberto e malandro,de orelha a orelha, a que junta um olhar vivo,
penetrante, que o coloca em alerta e pronto para a resposta ou para um trejeito
humorístico capaz de fazer rir as pedras da calçada.
A
princípio, receoso e desconfiado, começou por declinar a conversa. Mas,
espicaçado nos seus brios, para alguns dos episódios por si vividos e intencionalmente, desvirtuados, logo
ripostou deitando fora as hesitações iniciais, numa conversa de mais de duas
horas, em que sintetizou o "filme " da sua vida.
A “Praça”
lugar de nascimento
"Nasci
na Praça, numa casa onde está hoje a Fonte do Frade. Andei à escola até à
quarta classe, na escola do Rossio, mas não cheguei a fazer o exame. O
professor era o senhor José Dinis Paralta e no dia do exame, não me agradou
aquilo e vim-me embora. Saltei pela janela e, oh! patas!..."
Esta é
uma das muitas peripécias que Caetano Tomás recorda. Já sem o ouvido e o olhar
arguto de outrora, refugia-se na falta de audição para fugir a alguma pergunta
mais incómoda para, logo que a oportunidade aparece, se apressar a dizer que
"só não ouve o que não lhe agrada". De idade avançada, a memória já
lhe vai pregando algumas partidas. Ainda assim lembra-se de ter andado como
aprendiz de sapateiro na oficina do ti Lourenço Pação, na rua Direita, a dois
passos da casa onde nasceu. Por pouco tempo. O estar sentado, o dia inteiro,
entre solas e sapatos não ligava muito com o seu feitio, mais virado para o ar
livre e por isso, a etapa seguinte levou-o até à fábrica do pão, na Devesa.
"Trabalhei
na fábrica do senhor Ribeirinho uns quatro anos. Ia com uma carroça vender o
pão a Alpalhão, Pé da Serra, Arez, Velada, Amieira. Numa carroça com um macho
branco, lembro-me bem. Andei a vender pão cá em Nisa com um carrinho, mais o
pai do senhor Corrente, o Papo-seco sem pão. Levámos o pão à senhora Isabel da
Fábrica e à senhora Etelvina do José Januário. O carrinho levava 90 ou 100
pães, de quilo, que era obrigatório. Custava um bocado a esta fraca figura,
empurrar o carro pelas ruas cheias de buracos. De modo que eu guardava sempre
dois papo-secos do dia anterior e partia-os aos bocados e dava-os à gaitagem
que em troca ajudava a empurrar o carro.
Nunca faltavam ajudas."
Depois da
experiência como ajudante de padeiro, Caetano S. Pedro decidiu dar novo rumo à
sua vida e criar o seu próprio emprego.
"Com
a experiência que tinha adquirido, não é verdade, estabeleci-me por conta
própria e criei a minha própria firma de pinturas e caiações."
Considera-se
pioneiro neste género de trabalho em Nisa e no concelho. Nesta arte trabalhou
com o ti Manuel Bólinhas e o ti Manel do Benfica, para além do próprio filho.
Tudo
isto, numa época em que um novo trabalho artístico fazia a sua aparição: a
publicidade nas paredes. Os cartazes, anunciando produtos alimentares, de
limpeza para o lar, automóveis e outros, despertaram a curiosidade da
"firma familiar" de Caetano S. Pedro e de um momento para o outro
converteu-se em "agente publicitário". Tudo feito a rigor, como tem o
cuidado de reforçar.
"Os
cartazes vinham do Porto e de Lisboa, especialmente dirigidos ao Caetano Tomás
S. Pedro, ou seja, a minha pessoa. Não se pense que se ganhava alguma coisa de
jeito. Não senhor. Os cartazes vinham em rolos de 20 ou 30, tínhamos que
colá-los segundo o desenho que os rolos traziam e em sítios certos, pois não
podiam ser colados em qualquer sítio. Era uma tarefa que fazíamos quase sempre à noite, depois do
trabalho e o que se ganhava dava para beber uns copos. Só recebíamos depois de
mandarmos uma carta a dizer quantos tínhamos colado e em que locais."
Não havia
televisão e era a publicidade, afixada, na parede, a maior forma de divulgação
de produtos de grande consumo e foi esse trabalho, assim como as pinturas e
caiações que fizeram de Caetano S. Pedro uma das pessoas mais conhecidas e
carismáticas de todo o concelho de Nisa.
Os
fiscais das farinhas
Numa
época difícil, deitou mão às tarefas e ocupações que lhe podiam garantir algum
dinheiro para o sustento dos três filhos.
"Cheguei
a ir ao Pé da Serra com um pneu às costas, para ganhar 25 tostões. Era um tempo
custoso, mas cá o Caetano desenrascava-se sempre. Um dia ia trabalhar para as
pinturas em Arez e quando cheguei à Porta da Vila estava lá o senhor Joaquim
Polícia e diz para mim: "mostra-me lá a licença da bicicleta!". Como
não a mostrei, não a tinha, disse-me que "não abalas daqui sem tirares a
licença". Ficou-me com a bicicleta e tive que ir à Câmara tirar a licença
que custava 10$50, mais do que eu ganhava por dia. Só depois é que me deixou
abalar para Arez, onde cheguei quase às 11 horas".
Nota-se-lhe
que não tem boas recordações da autoridade, pelo menos de alguns elementos que
serviram nesse tempo.
"Uma
vez vinha da taberna do ti Raposinho, vinha a cantar - eu sempre gostei muito
de cantar - apareceu a Guarda e levou-me para o posto. Passei lá a noite.
Dantes a Guarda castigava muito o
pessoal de trabalho. Eram mandados..."
Uma das
peripécias mais conhecidas e protagonizada pelo nosso entrevistado passou-se no
Pé da Serra, quando este e um amigo resolveram fazer-se passar por fiscais dos
vinhos. A rir, o senhor Caetano não resiste a contar o episódio.
"Eu
e o José Quintino ( o Pelota) fomos ao Pé da Serra "armados" em
fiscais de vinhos. Vestidos com camisa de meia manga, azul, calça de cotim,
também azul, feitas pelo Manuel Caxamela, ninguém era capaz de dizer que não
éramos fiscais. O Pelota levava uma pasta que era do senhor Aníbal Vieira para
fazer melhor o papel de fiscal. Chegámos à taberna do Reizinho (primo da minha
mulher) e ele não estava. Apresentámo-nos como fiscais, comemos e bebemos, um
pão de trigo e um queijo mole, estava tudo a correr pelo melhor e nisto chega o
dono do estabelecimento. Bem, é melhor não contar mais... Tivemos que bater a
"butes", corridos
à pedrada, do Pé da Serra para Nisa. Não sei em quanto tempo fizemos o
caminho..."
Muitos
outros episódios, hilariantes, tem para contar. Um há, especial, em que a
"vítima" foi a própria mãe e que considera tratar-se, apenas, de uma
brincadeira.
Caetano
S. Pedro era, nessa altura, um jovem e a quem algum dinheirito fazia sempre
jeito, para o tabaquito. Um dia, como a mãe não se dispusesse a dar-lhe algum
dinheiro - se calhar, não tinha - mostrou-lhe um papel, que ele mesmo assinara,
dizendo-lhe que era uma multa, por ter
deitado água para a rua. A mãe, coitada, não teve outro remédio senão
arranjar-lhe o dinheiro que antes lhe tinha negado.
Quebrado
o gelo inicial, a conversa toma o caminho das festas populares, dos bailes, dos
divertimentos e do tempo da juventude. Caetano S. Pedro eleva-se na cadeira,
faz apelo à memória e dita para o papel, entusiasmado, quadras populares que
eram cantadas e bailadas ao som do harmónio ou das castanholas. Aqui registamos
algumas:
Eu um dia
para te ver
Dava
voltinhas à rua
Hoje já
dou dinheiro
Para não
ver tal figura
Ó laranja
e tangerina
Eu de ti
desejava um gomo
Tua mãe
está julgando
Qu´eu com
a boca te como.
Não te
encostes à parreira
Que a
parreira deita pó
Encosta-te
à minha cama
Estou sozinho,
durmo só.
Chamastes
ao meu bigode
O poleiro
dos passarinhos
Eu chamei
às tuas faces
O cofre
dos meus beijinhos.
Vai de
carta, vai de carta
Meu
raminho d´oliveira
Desculpa
ir mal escrita
De amores
é a primeira.
Ó minha
Santa Maria
Ó minha
Maria Santa
Tua casa
tens no monte
Onde o
passarinho canta.
O
passarinho quando canta
A sua
linda canção
Traz
rouxinóis na garganta
E
guitarradas no coração.
Ó triste
da minha vida
Ó triste
do meu viver
Para que
quero eu a vida
Eu não
sirvo para morrer.
Mário
Mendes in “Jornal de Nisa” nº 253 - 2008